sábado, 2 de agosto de 2025

SANTA PAULA DE ROMA, EXEMPLO DE MÃE QUE ABANDONA A FAMÍLIA POR AMOR A DEUS

 



Natural de Roma, nasceu em meados do século IV. Era da mais alta nobreza, pois em suas veias corria sangue dos Cipiões e dos mais antigos reis.

Após as perseguições, que foram terríveis, os cristãos relaxaram-se um pouco. Paula, embora cristã e honesta, vivia com excessivo luxo e moleza.

A Providência divina enviou-lhes amargos sofrimentos para desenganá-la do mundo. Perdeu o esposo, a quem amava-lhe entranhadamente, e ela mesma contraiu uma grave e prolongada enfermidade.

Quando recobrou a sua saúde, despojou-se de suas galas e consagrou-se por completo à oração, às obras de caridade e à educação dos filhos.

Por motivo da celebração de um concílio, convocado pelo Papa São Dâmaso, veio a Roma São Jerônimo, grande amigo do pontífice e incomparável conhecedor da Sagrada Escritura. Paula tomou-o por diretor espiritual e, seguindo seus conselhos, estudou os Livros Sagrados, especialmente os Evangelhos, e concebeu o desejo de visitar e venerar a gruta de Belém.

Após a morte de São Dâmaso, seu amigo São Jerônimo abandonou Roma, para dedicar-se de novo aos seus estudos bíblicos. Queria ultimar a sua gigantesca tarefa de traduzir toda a Bíblia para o latim.

Santa Paula não tardou a segui-lo. Confiou a uma filha casada a educação da menorzinha, e junto com Eustóquia, outra de suas filhas, embarcou rumo à Terra Santa.

Com São Jerônimo e Eustóquia, percorreu a Palestina. Ao chegar a Belém, exclamou chorando: “Eu te saúdo, ó Belém, cujo nome quer dizer Casa do Pão Celeste; eu te saúdo, antiga Efrata, cujo nome significa 'a Fértil', que tiveste por fruto e colheita o próprio Criador! É possível que eu, pecadora, beije o berço onde repousou o Menino Deus, ore na gruta, onde deu Jesus seus primeiros vagidos, onde a Virgem deu à luz o Salvador?”

Junto à gruta de Belém, ergueu um mosteiro para a comunidade de religiosas por ela fundada e dirigida; e nos arredores, outro para São Jerônimo e os seus monges. Construiu, além disso, um ótimo albergue para os peregrinos, e costumava dizer: “Se Maria e José tivessem que retornar a Belém, para o recenseamento, já não lhes faltaria lugar numa estalagem”.

Passou Santa Paula o resto da sua vida meditando a Sagrada Escritura, orando e mortificando-se com severas penitências, animada pelo suave pensamento de que ali mesmo dera o Redentor admirável lição de todas as virtudes.

Morreu aos 56 anos e foi sepultada numa gruta ao lado daquela do Nascimento.

Sobre a porta dessa gruta, mandou São Jerônimo gravar em versos estas palavras: “Vês este humilde sepulcro nesta rocha cavado? Dentro está de Paula o corpo, e dos bens celestes gozando está a alma. Deixou pais e pátria e irmão e filhos e aqui repousa, junto à gruta de Belém, onde os reis Magos a Cristo adoraram como a Deus e homem”.

Sua festa é celebrada em 28 de janeiro.[1]

 

(Extraído de “Tesouro de Exemplos”, Volume I, do Padre Francisco Alves, C.SS.R – Editora Vozes Ltda, páginas 83/84).

 

 VIDA DE SANTA PAULA ROMANA NARRADA POR SÃO JERÔNIMO

 Paula foi uma nobre senhora de Roma, cuja vida foi narrada por Jerônimo.

 1. “Se todas as partes do meu corpo estivessem convertidas em línguas e cada uma delas pudesse falar, eu não poderia dizer nada que se aproximasse das virtudes da santa e venerável Paula. Nascida de estirpe nobre, foi tornada ainda mais nobre por sua santidade; foi poderosa em riqueza, mas agora é muito mais importante por ter abraçado a pobreza de Cristo. Tomo como testemunha Jesus e seus santos anjos, em especial seu anjo da guarda, companheiro dessa mulher admirável, o que não digo por lisonja ou exagero, mas por ser pura verdade, reconhecendo que tudo o que poderia dizer está aquém de seus méritos.

Vou resumidamente dizer ao leitor quais foram suas virtudes. Deixou tudo aos pobres, tornando-se ela própria a mais pobre de todos. Entre todas as pedras preciosas, ela brilha como uma pérola inestimável, e da mesma forma que o brilho do sol apaga e obscurece a luz das estrelas, ela supera as virtudes de todos por sua humildade, fazendo-se a menor para se tornar a maior. À medida que ela se rebaixava, Cristo a elevava. Ela se escondia, mas não conseguia se ocultar; ela fugiu da vanglória e mereceu a glória, porque a glória segue a virtude como uma sombra, desprezando os que a buscam e buscando os que a desprezam.

Ela teve cinco filhos: Blesilha, por cuja morte a consolei em Roma; Paulina, que nomeou seu santo e admirável marido, Pamáquio, ao qual enviei um livrinho sobre a perda da esposa, herdeiro de seus bens e executor de seu testamento; Eustóquia, que ainda hoje vive nos Lugares Santos e é, por sua virgindade, um precioso ornamento da Igreja: Rufina, que por sua morte prematura encheu de dor a alma de sua mãe; Toxócio, após cujo nascimento ela parou de ter filhos, o que atesta que ela só desejara tê-los para satisfazer seu marido, que queria filhos homens. Depois da morte do marido, ela chorou tanto que pensou que ia perder a vida e consagrou-se de tal sorte ao serviço de Deus que se poderia imaginar que tinha desejado ficar viúva.

2. Que posso dizer das grandes riquezas daquela casa tão grande e tão nobre, e que ela distribuiu aos pobres? Inflamada pelas virtudes de Paulino bispo de Antioquia, e de Epifânio, que tinham vindo a Roma, ela pensou em rapidamente deixar seu país. Mas por que me demorar naquilo que vou narrar? Ela dirigiu-se ao porto, e seu irmão, seus primos, seus próximos e, mais importantes que todo o resto, seus filhos, acompanharam-na esforçando-se por convencer sua terna mãe a mudar de ideia. O navio de velas içadas e impulsionado pelos remos começava a se afastar, mas na praia o pequeno Toxócio ainda lhe estendia as mãos. Rufina, prestes a se casar, sem proferir uma palavra pedia-lhe, através do pranto, que esperasse suas bodas. No entanto Paula, erguendo os olhos para o Céu sem derramar uma só lágrima, superava, por seu amor a Deus, o amor que tinha por seus filhos. Ela esquecia que era mãe para atestar que era escrava de Cristo. Suas entranhas estavam dilaceradas e ela combatia contra uma dor que não era menor do que sentiria se lhe tivessem arrancado o coração. Mas às leis da natureza ela opunha uma fé imensa, e com alegria sacrificava seu amor aos filhos por um amor ainda maior a Deus. Somente sua filha Eustóquia acompanhou-a na viagem.

O navio ganhava o mar e todos os tripulantes olhavam para a praia, menos ela que desviava os olhos para não enxergar o que não podia ver sem dor. Logo que chegou à Terra Santa, o procônsul da Palestina, que conhecia muito bem a família dela, enviou-lhe serviçais para lhe preparar um palácio, mas ela preferiu uma humilde cela. Ali percorreu com tanto zelo e cuidado todos os lugares em que havia vestígios da passagem de Cristo, que só conseguia deixar um daqueles locais para se dirigir a outros. Ali ela se prosternou diante da cruz, como se o Senhor ainda estivesse pregado nela. Ao entrar no Sepulcro beijou a pedra da Ressurreição que o anjo havia tirado da entrada do monumento, e colocou seus lábios sobre o lugar em que repousara o corpo do Salvador, como se estivesse sedenta das águas da fé.

Toda Jerusalém, e mesmo o Senhor, a quem orava, foi testemunha de quantas lágrimas derramou, de quantos foram seus gemidos e quanta a dor. De lá foi a Belém, e tendo entrado no estábulo do Salvador, viu a casa sagrada da Virgem, e jurava para mim que que com os olhos da fé estava vendo o menino envolto nos cueiros chorando na manjedoura, os magos adorando o Senhor, a estrela brilhando no alto, a Virgem mãe, o pai de criação todo solícito, os pastores que vinham de noite para ver o Verbo encarnado, como se recitassem o começo do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo se fez carne”. Ela via as crianças degoladas, Herodes furioso, José e Maria fugindo para o Egito, e exclamava com uma alegria mesclada de lágrimas: “Salve, Belém, casa de pão, onde nasceu o pão descido do Céu[2], salve, terra de Efrata, região fértil da qual o próprio Deus é a fertilidade. Davi pôde dizer com razão: “Entraremos em seu tabernáculo, adoraremos o lugar em que ele pôs os pés”[3], e eu, miserável pecadora, fui julgada digna de beijar a manjedoura em que o Senhor chorou ao nascer. Este é o lugar do meu repouso, porque é a pátria de meu Senhor. Aqui habitarei, pois meu Senhor escolheu-a para nascer”.

3. Ela viveu com tal humildade, que quem a tivesse conhecido e então a visse não a teria reconhecido, e sim tomado pela última das criadas daquele grupo de virgens, devido a seus trajes, suas palavras, sua postura. Desde a morte do marido até seu último dia, ela não comeu na companhia de homem algum, por mais santo que fosse e mesmo que tivesse sido elevado à dignidade episcopal. Ela só se banhava se estivesse doente, só dormia em cama macia quando era acometida por fortes febres, senão repousava num cilício estendido na terra dura, se é que se pode chamar de repouso unir as noites aos dias para passa-las em orações quase contínuas. Chorava tanto por pequenas faltas, que alguém imaginaria que tinha cometido os maiores crimes. Quando lhe dizíamos que devia poupar sua vista e conservá-la para ler o Evangelho, respondia: “É preciso desfigurar este rosto que tantas vezes pintei de vermelho, branco e negro contra o mandamento de Deus. É preciso afligir este corpo que conheceu tantas delícias, é preciso compensar os risos e alegrias de tanto tempo por lágrimas contínuas, a delicadeza da roupa branca e a magnificência de ricos tecidos de seda pela aspereza do cilício. Do mesmo modo que agradei a meu marido e ao mundo, agora desejo agradar a Cristo”.

Entre tantas e tão grandes virtudes, parece-me supérfluo louvar sua castidade que, mesmo quando ela estava no século, serviu de exemplo a todas as damas de Roma, tendo sua conduta sido tal que nem mesmo os mais maledicentes ousaram inventar o que quer que fosse para criticá-la. Confesso que errei quando, vendo-a ser pródiga nas esmolas, eu a repreendi alegando a passagem do apóstolo: “Não se deve dar esmolas em tal quantidade que alivie os outros mas provoque dificuldades a vocês mesmos; é necessário guardar um pouco, para que a abundância que supre as necessidades dos outros não se esgote e impossibilite continuar a praticar a caridade”. [4] Ela me respondia em pouquíssimas palavras e com grande modéstia, invocando o Senhor como testemunha, dizendo que fazia tudo aquilo unicamente pelo amor que sentia por Ele, que desejava morrer pedindo esmola de forma a não deixar um único óbolo à filha a ser sepultada num lençol que não lhe pertencesse. Ela acrescentava, como último argumento: “Se ficar na completa miséria, encontrarei várias pessoas que me ajudarão, mas se um pobre morrer de fome por não receber de mim o que lhe posso facilmente dar, a quem se cobrará por sua vida?”

Ela não queria empregar dinheiro em pedras que desaparecerão com a terra e com o século, mas naquelas pedras vivas que caminham sobre a terra e com as quais, diz o Apocalipse de João, é construída a cidade do grande rei. Como ela pouco comia azeite, salvo nos dias de festa, é fácil adivinhar qual era seu sentimento no que concerne ao vinho, a outros delicados licores, ao peixe, ao leite, ao mel, aos ovos e coisas semelhantes que são agradáveis ao paladar e de cujo uso algumas pessoas que se consideram bastante sóbrias creem poder se fartar sem temer que isso prejudique sua honestidade.

Conheci um homem mau, um desses invejosos disfarçados que são a pior espécie de gente, que pretextando boa intenção foi lhe dizer que o extraordinário fervor que ela demonstrava fazia muitos a considerarem louca, e que ela devia se moderar e fortalecer o cérebro. E ela respondeu: “Estamos como num teatro, à vista do mundo, dos anjos e dos homens; alguns destes podem nos tomar por loucos de Cristo, mas a loucura de Cristo supera toda a sabedoria humana”.

Depois de ter construído um mosteiro para homens, cuja direção confiou a homens, reuniu em três outros mosteiros virgens procedentes de diferentes províncias, tanto mulheres nobres quanto de média e baixa condição. Ela organizou de tal maneira esses três mosteiros, que mesmo estando separados quanto aos trabalhos e às refeições, as religiosas salmodiavam e rezavam todas juntas. Se algumas delas se desentendiam, ela as reconciliava com a extrema candura de suas palavras. Através de jejuns frequentes e redobrados, ela debilitava os corpos dessas jovens, que tinham necessidade de mortificação, pois dizia: “É preferível a saúde do espírito do que a do estômago, a limpeza excessiva do corpo e da roupa é a sujeira da alma, e aquilo que é visto como falta leve pelas pessoas do século pode ser um enorme pecado num mosteiro”.

Embora desse todas as coisas em abundância às que estavam enfermas e até as fizesse comer carne, se ela própria adoecia não tinha a mesma indulgência e pecava contra a igualdade, sendo tão dura consigo quanto era cheia de clemência para com as outras. Contarei aqui um fato de que fui testemunha. Durante um verão muito quente, ficou doente no mês de julho, com febre fortíssima. Já se temia por sua vida, quando começou a sentir alguma melhora. Os médicos exortaram-na a tomar um pouco de vinho, pois consideravam necessário fortalece-la e impedir que se tornasse hidrópica por beber água. Eu, de meu lado, pedi em segredo ao bem-aventurado bispo Epifânio que a persuadisse e até a obrigasse a tomar o vinho. Como ela era clarividente e tinha um espirito muito agudo, logo suspeitou da artimanha que eu havia empregado e disse-me sorrindo que o discurso que o bispo lhe fizera vinha de mim. Quando o bem-aventurado bispo saiu, após ter tentado convencê-la por um bom tempo, eu lhe perguntei o que tinha conseguido e ele me respondeu: “Foi ela que quase persuadiu um homem de minha idade, a não mais tomar vinho”.

Ela sofria muito com a perca dos que amava, em particular de seus filhos, e nessas ocasiões, da mesma forma quando da morte do marido, quase morria de desgosto. Ela enfrentava a dor fazendo o sinal-da-cruz sobre a boca e o peito, enquanto suas entranhas eram dilaceradas pelo choque entre sua fé e seus sentimentos pessoais. Ela sabia de cor a Santa Escritura, e muito embora amasse as histórias nela contadas, que considerava o fundamento da verdade, apegava-se de preferência ao sentido espiritual delas, usando-o para construir o edifício de sua alma. Direi também uma coisa que talvez deixe incrédulos os que a invejam. Como desde jovem estudei a língua hebraica, e continuo a estudar com medo de esquecê-la. Paula também quis aprender aquele idioma. Logrou seu objetivo a tal ponto que que cantava os salmos em hebraico e falava essa língua sem recorrer a palavras latinas, o que sua santa filha Eustóquia ainda faz.

Naveguei até aqui com vento favorável e meu barco varou as ondas do mar sem dificuldades, mas esta narrativa vai agora encontrar obstáculos, porque quem poderia contar a morte de Paula sem derramar lágrimas? Ela soçobrou a uma grande doença, melhor dizendo, ela obteve o que desejava, que era nos deixar para se unir perfeitamente a Deus. Mas por que me detenho e prolongo assim minha dor, demorando a contar o fato? Aquela mulher tão prudente sentia ter apenas mais um momento de vida. Seu corpo já estava tomado pelo frio da morte, e restava-lhe apenas um pouco de calor que permitia que seu coração ainda palpitasse no seu sagrado e santo peito. Apesar disso, como se não houvesse ninguém perto dela, sussurrava os versículos: “Senhor, amei a beleza de sua casa e o lugar em que reside sua glória, achei diletos seus tabernáculos. Senhor, por isso procurei ser a última de todos na casa de meu Deus”. [5] Quando lhe perguntei porque ela se calava e não queria responder e se sentia alguma dor, disse-me em grego que nada lhe doía e que não via nada além de calma e tranquilidade. Depois disso se calou, e tendo fechado os olhos, já desprezando todas as coisas humanas, repetiu até o derradeiro suspiro os mesmos versículos, mas tão baixo que mal podíamos ouvir.

Ao seu funeral compareceram habitantes de todas as cidades da Palestina. Não houve cela capaz de reter os monges escondidos no deserto, nem cela capaz de impedir as virgens, porque todos pensavam que cometeriam sacrilégio caso deixassem de render tributo a uma mulher tão extraordinária, até que seu corpo estivesse enterrado no solo da igreja ao lado da gruta em que nascera o Senhor. Sua venerável filha, a virgem Eustóquia, abraçada à mãe, não podia suportar que a separassem dela, e beijava-lhe os olhos, colava-se a seu rosto, cobria-a de carícias e desejou ser sepultada com ela. Jesus é testemunha que aquela mulher não deixou uma só moeda para a filha, e sim o encargo de cuidar dos pobres e de um grande numero de monges e de virgens que ela achava impiedade abandonar.

Adeus, Paula, ajude com suas preces este ancião que te reverencia”

 (“Legenda Áurea – Vidas de Santos” – Jacopo de Varazze – Companhia das Letras, págs. 209/214)

 


[1] Na realidade, a sua festa cai no dia 26 de janeiro.

[2] São Jerônimo refere-se ao fato de o nome da cidade natal de Jesus significar em hebraico “casa do pão” (betlehem, designação talvez derivada de um antigo culto local cananeu a uma divindade agrária), e ao fato de Jesus ser “o pão que desce do Céu e dá vida ao mundo”, “ser o pão da vida” (Jo 6, 33-35).

[3] Salmo 131, 7

[4] II Cor 8, 13-14

[5] Salmos 26,8 e 84,1