Natural de Roma, nasceu em meados do século IV. Era da mais alta nobreza, pois em suas veias corria sangue dos Cipiões e dos mais antigos reis.
Após as perseguições, que foram terríveis, os
cristãos relaxaram-se um pouco. Paula, embora cristã e honesta, vivia com
excessivo luxo e moleza.
A Providência divina enviou-lhes amargos
sofrimentos para desenganá-la do mundo. Perdeu o esposo, a quem amava-lhe
entranhadamente, e ela mesma contraiu uma grave e prolongada enfermidade.
Quando recobrou a sua saúde, despojou-se de
suas galas e consagrou-se por completo à oração, às obras de caridade e à
educação dos filhos.
Por motivo da celebração de um concílio,
convocado pelo Papa São Dâmaso, veio a Roma São Jerônimo, grande amigo do
pontífice e incomparável conhecedor da Sagrada Escritura. Paula tomou-o por
diretor espiritual e, seguindo seus conselhos, estudou os Livros Sagrados,
especialmente os Evangelhos, e concebeu o desejo de visitar e venerar a gruta
de Belém.
Após a morte de São Dâmaso, seu amigo São
Jerônimo abandonou Roma, para dedicar-se de novo aos seus estudos bíblicos.
Queria ultimar a sua gigantesca tarefa de traduzir toda a Bíblia para o latim.
Santa Paula não tardou a segui-lo. Confiou a
uma filha casada a educação da menorzinha, e junto com Eustóquia, outra de suas
filhas, embarcou rumo à Terra Santa.
Com São Jerônimo e Eustóquia, percorreu a
Palestina. Ao chegar a Belém, exclamou chorando: “Eu te saúdo, ó Belém, cujo
nome quer dizer Casa do Pão Celeste; eu te saúdo, antiga Efrata, cujo nome
significa 'a Fértil', que tiveste por fruto e colheita o próprio Criador! É
possível que eu, pecadora, beije o berço onde repousou o Menino Deus, ore na
gruta, onde deu Jesus seus primeiros vagidos, onde a Virgem deu à luz o
Salvador?”
Junto à gruta de Belém, ergueu um mosteiro para
a comunidade de religiosas por ela fundada e dirigida; e nos arredores, outro
para São Jerônimo e os seus monges. Construiu, além disso, um ótimo albergue
para os peregrinos, e costumava dizer: “Se Maria e José tivessem que retornar a
Belém, para o recenseamento, já não lhes faltaria lugar numa estalagem”.
Passou Santa Paula o resto da sua vida
meditando a Sagrada Escritura, orando e mortificando-se com severas
penitências, animada pelo suave pensamento de que ali mesmo dera o Redentor
admirável lição de todas as virtudes.
Morreu aos 56 anos e foi sepultada numa gruta
ao lado daquela do Nascimento.
Sobre a porta dessa gruta, mandou São Jerônimo
gravar em versos estas palavras: “Vês este humilde sepulcro nesta rocha cavado?
Dentro está de Paula o corpo, e dos bens celestes gozando está a alma. Deixou
pais e pátria e irmão e filhos e aqui repousa, junto à gruta de Belém, onde os
reis Magos a Cristo adoraram como a Deus e homem”.
Sua festa é celebrada em 28 de janeiro.[1]
(Extraído de “Tesouro de Exemplos”, Volume I, do
Padre Francisco Alves, C.SS.R – Editora Vozes Ltda, páginas 83/84).
Vou
resumidamente dizer ao leitor quais foram suas virtudes. Deixou tudo aos pobres,
tornando-se ela própria a mais pobre de todos. Entre todas as pedras preciosas,
ela brilha como uma pérola inestimável, e da mesma forma que o brilho do sol
apaga e obscurece a luz das estrelas, ela supera as virtudes de todos por sua
humildade, fazendo-se a menor para se tornar a maior. À medida que ela se
rebaixava, Cristo a elevava. Ela se escondia, mas não conseguia se ocultar; ela
fugiu da vanglória e mereceu a glória, porque a glória
segue a virtude como uma sombra, desprezando os que a buscam e buscando os que
a desprezam.
Ela teve cinco filhos: Blesilha, por cuja morte a consolei
em Roma; Paulina, que nomeou seu santo e admirável marido, Pamáquio, ao qual
enviei um livrinho sobre a perda da esposa, herdeiro de seus bens e executor de
seu testamento; Eustóquia, que ainda hoje vive nos Lugares Santos e é, por sua
virgindade, um precioso ornamento da Igreja: Rufina, que por sua morte
prematura encheu de dor a alma de sua mãe; Toxócio, após cujo nascimento ela
parou de ter filhos, o que atesta que ela só desejara tê-los para satisfazer
seu marido, que queria filhos homens. Depois da morte do marido, ela chorou
tanto que pensou que ia perder a vida e consagrou-se de tal sorte ao serviço de
Deus que se poderia imaginar que tinha desejado ficar viúva.
2. Que posso dizer das grandes riquezas daquela casa tão
grande e tão nobre, e que ela distribuiu aos pobres? Inflamada pelas virtudes
de Paulino bispo de Antioquia, e de Epifânio, que tinham vindo a Roma, ela
pensou em rapidamente deixar seu país. Mas por que me demorar naquilo que vou
narrar? Ela dirigiu-se ao porto, e seu irmão, seus primos, seus próximos e,
mais importantes que todo o resto, seus filhos, acompanharam-na esforçando-se
por convencer sua terna mãe a mudar de ideia. O navio de velas içadas e impulsionado
pelos remos começava a se afastar, mas na praia o pequeno Toxócio ainda lhe
estendia as mãos. Rufina, prestes a se casar, sem proferir uma palavra
pedia-lhe, através do pranto, que esperasse suas bodas. No entanto Paula, erguendo
os olhos para o Céu sem derramar uma só lágrima, superava, por seu amor a Deus,
o amor que tinha por seus filhos. Ela esquecia que era mãe para atestar que era
escrava de Cristo. Suas entranhas estavam dilaceradas e ela combatia contra uma
dor que não era menor do que sentiria se lhe tivessem arrancado o coração. Mas
às leis da natureza ela opunha uma fé imensa, e com alegria sacrificava seu
amor aos filhos por um amor ainda maior a Deus. Somente sua filha Eustóquia
acompanhou-a na viagem.
O navio ganhava o mar e todos os tripulantes olhavam para a
praia, menos ela que desviava os olhos para não enxergar o que não podia ver
sem dor. Logo que chegou à Terra Santa, o procônsul da Palestina, que conhecia
muito bem a família dela, enviou-lhe serviçais para lhe preparar um palácio,
mas ela preferiu uma humilde cela. Ali percorreu com tanto zelo e cuidado todos
os lugares em que havia vestígios da passagem de Cristo, que só conseguia
deixar um daqueles locais para se dirigir a outros. Ali ela se prosternou
diante da cruz, como se o Senhor ainda estivesse pregado nela. Ao entrar no
Sepulcro beijou a pedra da Ressurreição que o anjo havia tirado da entrada do
monumento, e colocou seus lábios sobre o lugar em que repousara o corpo do
Salvador, como se estivesse sedenta das águas da fé.
Toda Jerusalém, e mesmo o Senhor, a quem orava, foi testemunha
de quantas lágrimas derramou, de quantos foram seus gemidos e quanta a dor. De
lá foi a Belém, e tendo entrado no estábulo do Salvador, viu a casa sagrada da
Virgem, e jurava para mim que que com os olhos da fé estava vendo o menino
envolto nos cueiros chorando na manjedoura, os magos adorando o Senhor, a
estrela brilhando no alto, a Virgem mãe, o pai de criação todo solícito, os
pastores que vinham de noite para ver o Verbo encarnado, como se recitassem o começo
do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo se fez carne”. Ela via as crianças degoladas, Herodes furioso, José e Maria
fugindo para o Egito, e exclamava com uma alegria mesclada de lágrimas: “Salve,
Belém, casa de pão, onde nasceu o pão descido do Céu[2], salve, terra de
Efrata, região fértil da qual o próprio Deus é a fertilidade. Davi pôde dizer
com razão: “Entraremos em seu tabernáculo, adoraremos o lugar em que ele pôs os
pés”[3], e eu, miserável
pecadora, fui julgada digna de beijar a manjedoura em que o Senhor chorou ao
nascer. Este é o lugar do meu repouso, porque é a pátria de meu Senhor. Aqui
habitarei, pois meu Senhor escolheu-a para nascer”.
3. Ela viveu com tal humildade, que quem a tivesse conhecido
e então a visse não a teria reconhecido, e sim tomado pela última das criadas
daquele grupo de virgens, devido a seus trajes, suas palavras, sua postura.
Desde a morte do marido até seu último dia, ela não comeu na companhia de homem
algum, por mais santo que fosse e mesmo que tivesse sido elevado à dignidade
episcopal. Ela só se banhava se estivesse doente, só dormia em cama macia
quando era acometida por fortes febres, senão repousava num cilício estendido
na terra dura, se é que se pode chamar de repouso unir as noites aos dias para passa-las
em orações quase contínuas. Chorava tanto por pequenas faltas, que alguém
imaginaria que tinha cometido os maiores crimes. Quando lhe dizíamos que devia
poupar sua vista e conservá-la para ler o Evangelho, respondia: “É preciso
desfigurar este rosto que tantas vezes pintei de vermelho, branco e negro
contra o mandamento de Deus. É preciso afligir este corpo que conheceu tantas
delícias, é preciso compensar os risos e alegrias de tanto tempo por lágrimas
contínuas, a delicadeza da roupa branca e a magnificência de ricos tecidos de
seda pela aspereza do cilício. Do mesmo modo que agradei a meu marido e ao
mundo, agora desejo agradar a Cristo”.
Entre tantas e tão grandes virtudes, parece-me supérfluo
louvar sua castidade que, mesmo quando ela estava no século, serviu de exemplo
a todas as damas de Roma, tendo sua conduta sido tal que nem mesmo os mais maledicentes
ousaram inventar o que quer que fosse para criticá-la. Confesso que errei
quando, vendo-a ser pródiga nas esmolas, eu a repreendi alegando a passagem do
apóstolo: “Não se deve dar esmolas em tal quantidade que alivie os outros mas
provoque dificuldades a vocês mesmos; é necessário guardar um pouco, para que a
abundância que supre as necessidades dos outros não se esgote e impossibilite
continuar a praticar a caridade”. [4] Ela me respondia em
pouquíssimas palavras e com grande modéstia, invocando o Senhor como
testemunha, dizendo que fazia tudo aquilo unicamente pelo amor que sentia por
Ele, que desejava morrer pedindo esmola de forma a não deixar um único óbolo à
filha a ser sepultada num lençol que não lhe pertencesse. Ela acrescentava,
como último argumento: “Se ficar na completa miséria, encontrarei várias
pessoas que me ajudarão, mas se um pobre morrer de fome por não receber de mim
o que lhe posso facilmente dar, a quem se cobrará por sua vida?”
Ela não queria empregar dinheiro em pedras que
desaparecerão com a terra e com o século, mas naquelas pedras vivas que
caminham sobre a terra e com as quais, diz o Apocalipse de João, é construída a
cidade do grande rei. Como ela pouco comia azeite, salvo nos dias de festa, é
fácil adivinhar qual era seu sentimento no que concerne ao vinho, a outros delicados
licores, ao peixe, ao leite, ao mel, aos ovos e coisas semelhantes que são
agradáveis ao paladar e de cujo uso algumas pessoas que se consideram bastante
sóbrias creem poder se fartar sem temer que isso prejudique sua honestidade.
Conheci um homem mau, um desses invejosos disfarçados que
são a pior espécie de gente, que pretextando boa intenção foi lhe dizer que o
extraordinário fervor que ela demonstrava fazia muitos a considerarem louca, e
que ela devia se moderar e fortalecer o cérebro. E ela respondeu: “Estamos como
num teatro, à vista do mundo, dos anjos e dos homens; alguns destes podem nos
tomar por loucos de Cristo, mas a loucura de Cristo supera toda a sabedoria humana”.
Depois de ter construído um mosteiro para homens, cuja
direção confiou a homens, reuniu em três outros mosteiros virgens procedentes
de diferentes províncias, tanto mulheres nobres quanto de média e baixa
condição. Ela organizou de tal maneira esses três mosteiros, que mesmo estando
separados quanto aos trabalhos e às refeições, as religiosas salmodiavam e rezavam
todas juntas. Se algumas delas se desentendiam, ela as reconciliava com a
extrema candura de suas palavras. Através de jejuns frequentes e redobrados,
ela debilitava os corpos dessas jovens, que tinham necessidade de mortificação,
pois dizia: “É preferível a saúde do espírito do que a do estômago, a limpeza
excessiva do corpo e da roupa é a sujeira da alma, e aquilo que é visto como
falta leve pelas pessoas do século pode ser um enorme pecado num mosteiro”.
Embora desse todas as coisas em abundância às que estavam
enfermas e até as fizesse comer carne, se ela própria adoecia não tinha a mesma
indulgência e pecava contra a igualdade, sendo tão dura consigo quanto era
cheia de clemência para com as outras. Contarei aqui um fato de que fui
testemunha. Durante um verão muito quente, ficou doente no mês de julho, com febre
fortíssima. Já se temia por sua vida, quando começou a sentir alguma melhora. Os
médicos exortaram-na a tomar um pouco de vinho, pois consideravam necessário fortalece-la
e impedir que se tornasse hidrópica por beber água. Eu, de meu lado, pedi em
segredo ao bem-aventurado bispo Epifânio que a persuadisse e até a obrigasse a
tomar o vinho. Como ela era clarividente e tinha um espirito muito agudo, logo
suspeitou da artimanha que eu havia empregado e disse-me sorrindo que o
discurso que o bispo lhe fizera vinha de mim. Quando o bem-aventurado bispo
saiu, após ter tentado convencê-la por um bom tempo, eu lhe perguntei o que
tinha conseguido e ele me respondeu: “Foi ela que quase persuadiu um homem de
minha idade, a não mais tomar vinho”.
Ela sofria muito com a perca dos que amava, em particular
de seus filhos, e nessas ocasiões, da mesma forma quando da morte do marido,
quase morria de desgosto. Ela enfrentava a dor fazendo o sinal-da-cruz sobre a
boca e o peito, enquanto suas entranhas eram dilaceradas pelo choque entre sua
fé e seus sentimentos pessoais. Ela sabia de cor a Santa Escritura, e muito
embora amasse as histórias nela contadas, que considerava o fundamento da
verdade, apegava-se de preferência ao sentido espiritual delas, usando-o para
construir o edifício de sua alma. Direi também uma coisa que talvez deixe
incrédulos os que a invejam. Como desde jovem estudei a língua hebraica, e
continuo a estudar com medo de esquecê-la. Paula também quis aprender aquele
idioma. Logrou seu objetivo a tal ponto que que cantava os salmos em hebraico e
falava essa língua sem recorrer a palavras latinas, o que sua santa filha Eustóquia
ainda faz.
Naveguei até aqui com vento favorável e meu barco varou as
ondas do mar sem dificuldades, mas esta narrativa vai agora encontrar obstáculos,
porque quem poderia contar a morte de Paula sem derramar lágrimas? Ela soçobrou
a uma grande doença, melhor dizendo, ela obteve o que desejava, que era nos
deixar para se unir perfeitamente a Deus. Mas por que me detenho e prolongo
assim minha dor, demorando a contar o fato? Aquela mulher tão prudente sentia
ter apenas mais um momento de vida. Seu corpo já estava tomado pelo frio da
morte, e restava-lhe apenas um pouco de calor que permitia que seu coração ainda
palpitasse no seu sagrado e santo peito. Apesar disso, como se não houvesse
ninguém perto dela, sussurrava os versículos: “Senhor, amei a beleza de sua
casa e o lugar em que reside sua glória, achei diletos seus tabernáculos.
Senhor, por isso procurei ser a última de todos na casa de meu Deus”. [5] Quando lhe perguntei
porque ela se calava e não queria responder e se sentia alguma dor, disse-me em
grego que nada lhe doía e que não via nada além de calma e tranquilidade.
Depois disso se calou, e tendo fechado os olhos, já desprezando todas as coisas
humanas, repetiu até o derradeiro suspiro os mesmos versículos, mas tão baixo
que mal podíamos ouvir.
Ao seu funeral compareceram habitantes de todas as cidades
da Palestina. Não houve cela capaz de reter os monges escondidos no deserto, nem
cela capaz de impedir as virgens, porque todos pensavam que cometeriam sacrilégio
caso deixassem de render tributo a uma mulher tão extraordinária, até que seu corpo
estivesse enterrado no solo da igreja ao lado da gruta em que nascera o Senhor.
Sua venerável filha, a virgem Eustóquia, abraçada à mãe, não podia suportar que
a separassem dela, e beijava-lhe os olhos, colava-se a seu rosto, cobria-a de
carícias e desejou ser sepultada com ela. Jesus é testemunha que aquela mulher
não deixou uma só moeda para a filha, e sim o encargo de cuidar dos pobres e de
um grande numero de monges e de virgens que ela achava impiedade abandonar.
Adeus, Paula, ajude com suas preces este ancião que te
reverencia”
[1] Na
realidade, a sua festa cai no dia 26 de janeiro.
[2] São
Jerônimo refere-se ao fato de o nome da cidade natal de Jesus significar em
hebraico “casa do pão” (betlehem, designação talvez derivada de um antigo culto
local cananeu a uma divindade agrária), e ao fato de Jesus ser “o pão que desce
do Céu e dá vida ao mundo”, “ser o pão da vida” (Jo 6, 33-35).
[3]
Salmo 131, 7
[4] II
Cor 8, 13-14
[5]
Salmos 26,8 e 84,1