quinta-feira, 7 de agosto de 2025

SÃO DOMINGOS DE GUSMÃO, UM INOCENTE QUE IRRADIA LUZ ESPIRITUAL

 


 




São Domingos de Gusmão (cuja festa se celebra em agosto) e São Francisco de Assis, seu contemporâneo, foram dois luzeiros cujas vocações se interpenetram. Considera-se terem realizado o famoso sonho de Inocêncio III, no qual esse Papa viu a Basílica de São João de Latrão, que simbolizava a Cristandade, rachada e sendo sustentada, ora por São Domingos, ora por São Francisco. Dr. Plínio tinha por ambos profunda admiração, que se traduziu em numerosos comentários pervadidos de sentimentos de enlevo e veneração.

Na conferência que transcrevemos a seguir, ele analisa um afresco de Fra Angélico, no qual o insigne pintor dominicano procura retratar as perfeições morais de seu santo Fundador.

 

A Cristandade tendia já naquela época para a moleza, o relaxamento, a perda do senso do sacrifício, do sobrenatural, e se inundava dos bens materiais que o avanço da civilização proporcionava.

Foi neste contexto que, para barrar o progresso do mal, Deus suscitou as vocações de São Francisco e de São Domingos: o primeiro, pela caridade, e o segundo, pela lógica, lograram conjuntamente reerguer a Idade Média do século XIII. A Ordem dos Franciscanos devia praticar em grau exímio a humildade e a pobreza; a dos Dominicanos, combater num terreno mais intelectual o orgulho e a sensualidade.

Na conferência de hoje, pretendo voltar-me particularmente para São Domingos. Procuremos vê-lo pelos olhos de um de seus mais eminentes filhos espirituais, Fra Angélico.

Em um de seus célebres afrescos (página ao lado), ele representa São Domingos ainda muito moço, vestido de dominicano, numa atitude pensativa, meditando ao pé da Cruz.

A pintura mostra um personagem muito sereno e calmo. Mas, ao mesmo tempo, dentro da  serenidade e da calma dele, está se entregando a uma intensa atividade. Encontra-se numa pesquisa, numa interrogação. Sem tensões nem cansaços errados, a investigação de seu espírito se concentra num determinado ponto. De outro lado, nota-se nele uma atitude de enlevo e de amor.

No todo externo deste homem há algo de luminoso. Ele irradia uma luz que não é física, mas espiritual. Não se trata do viço da mocidade, também presente nele; é uma espécie de luz interior, mais ou menos indefinível, decorrente de uma extraordinária lucidez e de uma clara visão das coisas. 

Singular discernimento das almas

Tem-se a impressão de que, se um de nós olhasse o mundo de dentro dos olhos dele, veria o universo com alguns matizes completamente diferentes. Sobretudo, no que diz respeito às almas.

Examinando-as, procurando conhecer caráteres, esse homem está tão distante do lamaçal das atividades comuns, tão longe das paixões que habitualmente os homens têm, que ele, por diferença, percebe muito mais essas desordens e, por co-naturalidade, também discerne melhor o que há de bom nos homens. Ele tem uma visão muito mais penetrante do mundo das almas, do que uma pessoa comum.

Fortaleza, clareza de visão e equilíbrio

Uma objeção que se poderia fazer a esta figura é a seguinte: onde está presente dentro dela a  combatividade de espírito? Parece uma pessoa feita para concordar com tudo, e capaz apenas desse sorrisinho que esboça. E, a esse título, é uma pessoa que deve ser rejeitada por uma verdadeira formação.

Na realidade, imaginemos este homem fechando o livro e presenciando alguma cena de despudor insolente ou alguma extravagância, que se tornaram tão comuns nas ruas de hoje. Ele ficaria ou não profundamente chocado, e quereria empunhar um látego como aquele com que Nosso Senhor  expulsou os vendilhões do Templo? Certamente.

É na sua extrema inocência, na sua extrema candura que reside uma extrema clareza de visão, muita fortaleza e muito equilíbrio. Este homem é capaz de atitudes enérgicas, mas também, no intervalo  das batalhas, de sorrir e meditar sobre o Natal. Sem violências, sem choques interiores, ele passa de um estado de alma para outro.

Ele é, entretanto, um homem transparente para cada um de nós compreendê-lo. Um homem que poderíamos sondar, no mais íntimo de sua alma, para perguntarmos qual é o ponto de partida de todo esse equilíbrio que ele demonstra.

O ponto de partida é, antes de tudo, uma noção primeira da ordem. Porque esta é uma pessoa que  nunca perdeu a graça batismal. Isto está escrito na sua fisionomia. Não se poderia admitir, por exemplo, que lhe fizessem esta biografia: “Grande santo penitente. Viveu por muito tempo no meio de pessoas corrompidas e cometeu inúmeros assassinatos. Ei-lo depois de convertido”. A penitência tem aspectos mais sublimes, mas não tem o da inocência. Neste homem se discerne a graça batismal na sua candura originária, em sua beleza primaveril.

Certezas extraordinárias

A partir da fidelidade à graça batismal, há uma certa retidão por onde ele vê muito claramente que a verdade é a verdade, e o erro é o erro. E os primeiros princípios universais da lógica e do entendimento não passaram pelo menor abalo, no espírito dele. De maneira que ele possui naturalmente certezas extraordinárias.

Prestemos atenção em sua fisionomia: não há o menor grau de dúvida a respeito de nada. Ele nunca duvidou. Consideremos com que tranquilidade ele procura o seu caminho. Por quê? Porque ele anda a partir de certezas que nunca foram abaladas, e que lhe abrirão todas as portas.

De outro lado, com essa noção muito grande de todas as certezas, possui ele uma naturalidade e um modo categórico de condenar completamente o erro, e de se desfazer do mal de uma forma que não admite discussão: é, e está acabado!

Fé católica absoluta

Tomemos a fé católica deste homem, por exemplo. É uma fé total, absoluta! Ele acha evidente que a Igreja Católica seja verdadeira. Não há dúvidas para ele a esse respeito. É uma fé que nasce dessas certezas originárias, serenas e magníficas de quem nunca pecou contra a criteriologia, nunca pecou contra os próprios nervos, nunca pecou contra nada! E que progride na sua vida espiritual como o Rio Amazonas corre para o mar: caudaloso, enorme, tranquilo, arrastando tudo, empurrando o mar longe para frente. Não é um rio wagneriano com cascatas, com quedas d’água nem coisas semelhantes. Ele se dirige para o oceano em linha reta, e chega ao mar. O mar, neste caso, é o Céu!... 

Um profundo senso do divino

Outra coisa que há nele é o senso do divino, que se traduziria pouco mais ou menos num raciocínio da seguinte evidência:

“Eu existo. Contudo, é verdade também que antes de mim existiu uma quantidade enorme de seres. É verdade que, ao mesmo tempo em que eu existo, existe uma quantidade enorme de seres, e que depois de mim existirá outra quantidade enorme de seres. Há, portanto, um fluxo do existir dentro do qual, somando e subtraindo, eu sou uma gota, e não o centro dele.

“Por detrás desse fluxo de  existência há uma ordenação, uma regra, uma concatenação de fatos, uma sucessão de coisas que constituem um universo coordenado e uno. Esse universo que assim existe me dá a ideia de um Ser ainda maior do que ele e, portanto, um Ser Absoluto, Divino, que também existe. É Ele o Criador de tudo.”

É a primeira impostação da alma diante de Deus.

Este é um homem sem interesses individuais. Ele não tem vaidades, nem complexos, nem ambições. Ele tem o hábito de, no seu pensamento, nas suas reflexões, não reportar as coisas a si, mas a este absoluto que é Deus, e que é o centro para onde ele está voltado. 

Da inocência, o espírito apostólico

Então nós temos que, para este homem, rutila com clareza muito maior do que para o comum dos  homens a noção de que a verdade é a verdade, o erro é o erro, o bem é o bem, e o mal é o mal. Vamos dizer que este homem, de repente, se encontrasse com Lutero. Ele se diferenciaria do heresiarca por vários abismos sucessivos. Ele iria notando as divergências, e diria: “Não! Errado!”

E depois: “Vou pregar contra as ideias erradas de Lutero, pois não posso deixar que leve outros a seus erros! Nós não cabemos juntos no mundo!”

Donde nasceu o ímpeto desse espírito apostólico? Nasceu da candura originária, que é, em última análise, a boa ordem inicial de todo ser. Nasceu de todos os primeiros princípios da razão, de todos os primeiros impulsos dos nervos, de toda a graça do Batismo. Nasceu do senso do divino, e do respeito enorme por tudo o que existe, inclusive por si próprio, sentindo, por detrás, Deus que o envolve e que o transcende. Eis o ponto de partida desta alma inocente, que contém todo o resto.

“Paraíso originário” de todo batizado

Esse estado de alma é o “paraíso originário” que todo batizado tem, em grau maior ou menor do que São Domingos.

E aqui, ao término dos comentários sobre esta magnífica representação do Fundador dos dominicanos, parece-me apropriado ressaltar esta verdade: todos nós tivemos a inocência batismal. É ou não é verdade que todos nós, no fundo de nossas almas, sentimos saudades dos encantos do  tempo em que éramos inocentes?

Entretanto, como fomos feitos para viver dessa inocência, permanecem na alma mil cordas que ninguém vibrou, mil solicitações que não foram atendidas, mil possibilidades de expansão que de fato não foram aproveitadas, mil apetites feitos para a casa paterna que se vão saciar nas bolotas dos porcos. Resultado: mil remorsos indefinidos, não se está contente consigo mesmo, não se sente limpo diante de Deus.

Achamos que nossa existência é dura. É verdade. Porém, não agravamos nosso exílio, fechando as janelas que davam para o Céu? Há na Escritura uma lamentação de Deus, dirigida ao povo hebraico: “Vós transformastes o meu templo numa barraca para guardar frutas”. Não somos nós um templo do Espírito Santo, que transformamos em barraca para guardar frutas?

Olhando de frente nossa situação atual, lembremo-nos que tudo aquilo pode ser restaurado, desde que rezemos com confiança nesse sentido. Peçamos, pois, a Deus Nosso Senhor, por meio de Maria Santíssima, que nos limpe de nossos pecados e imperfeições, e restaure em nós aquela bondade derivada das graças que o Batismo infundiu em nossas almas.

 (Revista “Dr. Plínio”, n. 17, agosto de 1999, págs. 7/9)


sábado, 2 de agosto de 2025

SANTA PAULA DE ROMA, EXEMPLO DE MÃE QUE ABANDONA A FAMÍLIA POR AMOR A DEUS

 



Natural de Roma, nasceu em meados do século IV. Era da mais alta nobreza, pois em suas veias corria sangue dos Cipiões e dos mais antigos reis.

Após as perseguições, que foram terríveis, os cristãos relaxaram-se um pouco. Paula, embora cristã e honesta, vivia com excessivo luxo e moleza.

A Providência divina enviou-lhes amargos sofrimentos para desenganá-la do mundo. Perdeu o esposo, a quem amava-lhe entranhadamente, e ela mesma contraiu uma grave e prolongada enfermidade.

Quando recobrou a sua saúde, despojou-se de suas galas e consagrou-se por completo à oração, às obras de caridade e à educação dos filhos.

Por motivo da celebração de um concílio, convocado pelo Papa São Dâmaso, veio a Roma São Jerônimo, grande amigo do pontífice e incomparável conhecedor da Sagrada Escritura. Paula tomou-o por diretor espiritual e, seguindo seus conselhos, estudou os Livros Sagrados, especialmente os Evangelhos, e concebeu o desejo de visitar e venerar a gruta de Belém.

Após a morte de São Dâmaso, seu amigo São Jerônimo abandonou Roma, para dedicar-se de novo aos seus estudos bíblicos. Queria ultimar a sua gigantesca tarefa de traduzir toda a Bíblia para o latim.

Santa Paula não tardou a segui-lo. Confiou a uma filha casada a educação da menorzinha, e junto com Eustóquia, outra de suas filhas, embarcou rumo à Terra Santa.

Com São Jerônimo e Eustóquia, percorreu a Palestina. Ao chegar a Belém, exclamou chorando: “Eu te saúdo, ó Belém, cujo nome quer dizer Casa do Pão Celeste; eu te saúdo, antiga Efrata, cujo nome significa 'a Fértil', que tiveste por fruto e colheita o próprio Criador! É possível que eu, pecadora, beije o berço onde repousou o Menino Deus, ore na gruta, onde deu Jesus seus primeiros vagidos, onde a Virgem deu à luz o Salvador?”

Junto à gruta de Belém, ergueu um mosteiro para a comunidade de religiosas por ela fundada e dirigida; e nos arredores, outro para São Jerônimo e os seus monges. Construiu, além disso, um ótimo albergue para os peregrinos, e costumava dizer: “Se Maria e José tivessem que retornar a Belém, para o recenseamento, já não lhes faltaria lugar numa estalagem”.

Passou Santa Paula o resto da sua vida meditando a Sagrada Escritura, orando e mortificando-se com severas penitências, animada pelo suave pensamento de que ali mesmo dera o Redentor admirável lição de todas as virtudes.

Morreu aos 56 anos e foi sepultada numa gruta ao lado daquela do Nascimento.

Sobre a porta dessa gruta, mandou São Jerônimo gravar em versos estas palavras: “Vês este humilde sepulcro nesta rocha cavado? Dentro está de Paula o corpo, e dos bens celestes gozando está a alma. Deixou pais e pátria e irmão e filhos e aqui repousa, junto à gruta de Belém, onde os reis Magos a Cristo adoraram como a Deus e homem”.

Sua festa é celebrada em 28 de janeiro.[1]

 

(Extraído de “Tesouro de Exemplos”, Volume I, do Padre Francisco Alves, C.SS.R – Editora Vozes Ltda, páginas 83/84).

 

 VIDA DE SANTA PAULA ROMANA NARRADA POR SÃO JERÔNIMO

 Paula foi uma nobre senhora de Roma, cuja vida foi narrada por Jerônimo.

 1. “Se todas as partes do meu corpo estivessem convertidas em línguas e cada uma delas pudesse falar, eu não poderia dizer nada que se aproximasse das virtudes da santa e venerável Paula. Nascida de estirpe nobre, foi tornada ainda mais nobre por sua santidade; foi poderosa em riqueza, mas agora é muito mais importante por ter abraçado a pobreza de Cristo. Tomo como testemunha Jesus e seus santos anjos, em especial seu anjo da guarda, companheiro dessa mulher admirável, o que não digo por lisonja ou exagero, mas por ser pura verdade, reconhecendo que tudo o que poderia dizer está aquém de seus méritos.

Vou resumidamente dizer ao leitor quais foram suas virtudes. Deixou tudo aos pobres, tornando-se ela própria a mais pobre de todos. Entre todas as pedras preciosas, ela brilha como uma pérola inestimável, e da mesma forma que o brilho do sol apaga e obscurece a luz das estrelas, ela supera as virtudes de todos por sua humildade, fazendo-se a menor para se tornar a maior. À medida que ela se rebaixava, Cristo a elevava. Ela se escondia, mas não conseguia se ocultar; ela fugiu da vanglória e mereceu a glória, porque a glória segue a virtude como uma sombra, desprezando os que a buscam e buscando os que a desprezam.

Ela teve cinco filhos: Blesilha, por cuja morte a consolei em Roma; Paulina, que nomeou seu santo e admirável marido, Pamáquio, ao qual enviei um livrinho sobre a perda da esposa, herdeiro de seus bens e executor de seu testamento; Eustóquia, que ainda hoje vive nos Lugares Santos e é, por sua virgindade, um precioso ornamento da Igreja: Rufina, que por sua morte prematura encheu de dor a alma de sua mãe; Toxócio, após cujo nascimento ela parou de ter filhos, o que atesta que ela só desejara tê-los para satisfazer seu marido, que queria filhos homens. Depois da morte do marido, ela chorou tanto que pensou que ia perder a vida e consagrou-se de tal sorte ao serviço de Deus que se poderia imaginar que tinha desejado ficar viúva.

2. Que posso dizer das grandes riquezas daquela casa tão grande e tão nobre, e que ela distribuiu aos pobres? Inflamada pelas virtudes de Paulino bispo de Antioquia, e de Epifânio, que tinham vindo a Roma, ela pensou em rapidamente deixar seu país. Mas por que me demorar naquilo que vou narrar? Ela dirigiu-se ao porto, e seu irmão, seus primos, seus próximos e, mais importantes que todo o resto, seus filhos, acompanharam-na esforçando-se por convencer sua terna mãe a mudar de ideia. O navio de velas içadas e impulsionado pelos remos começava a se afastar, mas na praia o pequeno Toxócio ainda lhe estendia as mãos. Rufina, prestes a se casar, sem proferir uma palavra pedia-lhe, através do pranto, que esperasse suas bodas. No entanto Paula, erguendo os olhos para o Céu sem derramar uma só lágrima, superava, por seu amor a Deus, o amor que tinha por seus filhos. Ela esquecia que era mãe para atestar que era escrava de Cristo. Suas entranhas estavam dilaceradas e ela combatia contra uma dor que não era menor do que sentiria se lhe tivessem arrancado o coração. Mas às leis da natureza ela opunha uma fé imensa, e com alegria sacrificava seu amor aos filhos por um amor ainda maior a Deus. Somente sua filha Eustóquia acompanhou-a na viagem.

O navio ganhava o mar e todos os tripulantes olhavam para a praia, menos ela que desviava os olhos para não enxergar o que não podia ver sem dor. Logo que chegou à Terra Santa, o procônsul da Palestina, que conhecia muito bem a família dela, enviou-lhe serviçais para lhe preparar um palácio, mas ela preferiu uma humilde cela. Ali percorreu com tanto zelo e cuidado todos os lugares em que havia vestígios da passagem de Cristo, que só conseguia deixar um daqueles locais para se dirigir a outros. Ali ela se prosternou diante da cruz, como se o Senhor ainda estivesse pregado nela. Ao entrar no Sepulcro beijou a pedra da Ressurreição que o anjo havia tirado da entrada do monumento, e colocou seus lábios sobre o lugar em que repousara o corpo do Salvador, como se estivesse sedenta das águas da fé.

Toda Jerusalém, e mesmo o Senhor, a quem orava, foi testemunha de quantas lágrimas derramou, de quantos foram seus gemidos e quanta a dor. De lá foi a Belém, e tendo entrado no estábulo do Salvador, viu a casa sagrada da Virgem, e jurava para mim que que com os olhos da fé estava vendo o menino envolto nos cueiros chorando na manjedoura, os magos adorando o Senhor, a estrela brilhando no alto, a Virgem mãe, o pai de criação todo solícito, os pastores que vinham de noite para ver o Verbo encarnado, como se recitassem o começo do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo se fez carne”. Ela via as crianças degoladas, Herodes furioso, José e Maria fugindo para o Egito, e exclamava com uma alegria mesclada de lágrimas: “Salve, Belém, casa de pão, onde nasceu o pão descido do Céu[2], salve, terra de Efrata, região fértil da qual o próprio Deus é a fertilidade. Davi pôde dizer com razão: “Entraremos em seu tabernáculo, adoraremos o lugar em que ele pôs os pés”[3], e eu, miserável pecadora, fui julgada digna de beijar a manjedoura em que o Senhor chorou ao nascer. Este é o lugar do meu repouso, porque é a pátria de meu Senhor. Aqui habitarei, pois meu Senhor escolheu-a para nascer”.

3. Ela viveu com tal humildade, que quem a tivesse conhecido e então a visse não a teria reconhecido, e sim tomado pela última das criadas daquele grupo de virgens, devido a seus trajes, suas palavras, sua postura. Desde a morte do marido até seu último dia, ela não comeu na companhia de homem algum, por mais santo que fosse e mesmo que tivesse sido elevado à dignidade episcopal. Ela só se banhava se estivesse doente, só dormia em cama macia quando era acometida por fortes febres, senão repousava num cilício estendido na terra dura, se é que se pode chamar de repouso unir as noites aos dias para passa-las em orações quase contínuas. Chorava tanto por pequenas faltas, que alguém imaginaria que tinha cometido os maiores crimes. Quando lhe dizíamos que devia poupar sua vista e conservá-la para ler o Evangelho, respondia: “É preciso desfigurar este rosto que tantas vezes pintei de vermelho, branco e negro contra o mandamento de Deus. É preciso afligir este corpo que conheceu tantas delícias, é preciso compensar os risos e alegrias de tanto tempo por lágrimas contínuas, a delicadeza da roupa branca e a magnificência de ricos tecidos de seda pela aspereza do cilício. Do mesmo modo que agradei a meu marido e ao mundo, agora desejo agradar a Cristo”.

Entre tantas e tão grandes virtudes, parece-me supérfluo louvar sua castidade que, mesmo quando ela estava no século, serviu de exemplo a todas as damas de Roma, tendo sua conduta sido tal que nem mesmo os mais maledicentes ousaram inventar o que quer que fosse para criticá-la. Confesso que errei quando, vendo-a ser pródiga nas esmolas, eu a repreendi alegando a passagem do apóstolo: “Não se deve dar esmolas em tal quantidade que alivie os outros mas provoque dificuldades a vocês mesmos; é necessário guardar um pouco, para que a abundância que supre as necessidades dos outros não se esgote e impossibilite continuar a praticar a caridade”. [4] Ela me respondia em pouquíssimas palavras e com grande modéstia, invocando o Senhor como testemunha, dizendo que fazia tudo aquilo unicamente pelo amor que sentia por Ele, que desejava morrer pedindo esmola de forma a não deixar um único óbolo à filha a ser sepultada num lençol que não lhe pertencesse. Ela acrescentava, como último argumento: “Se ficar na completa miséria, encontrarei várias pessoas que me ajudarão, mas se um pobre morrer de fome por não receber de mim o que lhe posso facilmente dar, a quem se cobrará por sua vida?”

Ela não queria empregar dinheiro em pedras que desaparecerão com a terra e com o século, mas naquelas pedras vivas que caminham sobre a terra e com as quais, diz o Apocalipse de João, é construída a cidade do grande rei. Como ela pouco comia azeite, salvo nos dias de festa, é fácil adivinhar qual era seu sentimento no que concerne ao vinho, a outros delicados licores, ao peixe, ao leite, ao mel, aos ovos e coisas semelhantes que são agradáveis ao paladar e de cujo uso algumas pessoas que se consideram bastante sóbrias creem poder se fartar sem temer que isso prejudique sua honestidade.

Conheci um homem mau, um desses invejosos disfarçados que são a pior espécie de gente, que pretextando boa intenção foi lhe dizer que o extraordinário fervor que ela demonstrava fazia muitos a considerarem louca, e que ela devia se moderar e fortalecer o cérebro. E ela respondeu: “Estamos como num teatro, à vista do mundo, dos anjos e dos homens; alguns destes podem nos tomar por loucos de Cristo, mas a loucura de Cristo supera toda a sabedoria humana”.

Depois de ter construído um mosteiro para homens, cuja direção confiou a homens, reuniu em três outros mosteiros virgens procedentes de diferentes províncias, tanto mulheres nobres quanto de média e baixa condição. Ela organizou de tal maneira esses três mosteiros, que mesmo estando separados quanto aos trabalhos e às refeições, as religiosas salmodiavam e rezavam todas juntas. Se algumas delas se desentendiam, ela as reconciliava com a extrema candura de suas palavras. Através de jejuns frequentes e redobrados, ela debilitava os corpos dessas jovens, que tinham necessidade de mortificação, pois dizia: “É preferível a saúde do espírito do que a do estômago, a limpeza excessiva do corpo e da roupa é a sujeira da alma, e aquilo que é visto como falta leve pelas pessoas do século pode ser um enorme pecado num mosteiro”.

Embora desse todas as coisas em abundância às que estavam enfermas e até as fizesse comer carne, se ela própria adoecia não tinha a mesma indulgência e pecava contra a igualdade, sendo tão dura consigo quanto era cheia de clemência para com as outras. Contarei aqui um fato de que fui testemunha. Durante um verão muito quente, ficou doente no mês de julho, com febre fortíssima. Já se temia por sua vida, quando começou a sentir alguma melhora. Os médicos exortaram-na a tomar um pouco de vinho, pois consideravam necessário fortalece-la e impedir que se tornasse hidrópica por beber água. Eu, de meu lado, pedi em segredo ao bem-aventurado bispo Epifânio que a persuadisse e até a obrigasse a tomar o vinho. Como ela era clarividente e tinha um espirito muito agudo, logo suspeitou da artimanha que eu havia empregado e disse-me sorrindo que o discurso que o bispo lhe fizera vinha de mim. Quando o bem-aventurado bispo saiu, após ter tentado convencê-la por um bom tempo, eu lhe perguntei o que tinha conseguido e ele me respondeu: “Foi ela que quase persuadiu um homem de minha idade, a não mais tomar vinho”.

Ela sofria muito com a perca dos que amava, em particular de seus filhos, e nessas ocasiões, da mesma forma quando da morte do marido, quase morria de desgosto. Ela enfrentava a dor fazendo o sinal-da-cruz sobre a boca e o peito, enquanto suas entranhas eram dilaceradas pelo choque entre sua fé e seus sentimentos pessoais. Ela sabia de cor a Santa Escritura, e muito embora amasse as histórias nela contadas, que considerava o fundamento da verdade, apegava-se de preferência ao sentido espiritual delas, usando-o para construir o edifício de sua alma. Direi também uma coisa que talvez deixe incrédulos os que a invejam. Como desde jovem estudei a língua hebraica, e continuo a estudar com medo de esquecê-la. Paula também quis aprender aquele idioma. Logrou seu objetivo a tal ponto que que cantava os salmos em hebraico e falava essa língua sem recorrer a palavras latinas, o que sua santa filha Eustóquia ainda faz.

Naveguei até aqui com vento favorável e meu barco varou as ondas do mar sem dificuldades, mas esta narrativa vai agora encontrar obstáculos, porque quem poderia contar a morte de Paula sem derramar lágrimas? Ela soçobrou a uma grande doença, melhor dizendo, ela obteve o que desejava, que era nos deixar para se unir perfeitamente a Deus. Mas por que me detenho e prolongo assim minha dor, demorando a contar o fato? Aquela mulher tão prudente sentia ter apenas mais um momento de vida. Seu corpo já estava tomado pelo frio da morte, e restava-lhe apenas um pouco de calor que permitia que seu coração ainda palpitasse no seu sagrado e santo peito. Apesar disso, como se não houvesse ninguém perto dela, sussurrava os versículos: “Senhor, amei a beleza de sua casa e o lugar em que reside sua glória, achei diletos seus tabernáculos. Senhor, por isso procurei ser a última de todos na casa de meu Deus”. [5] Quando lhe perguntei porque ela se calava e não queria responder e se sentia alguma dor, disse-me em grego que nada lhe doía e que não via nada além de calma e tranquilidade. Depois disso se calou, e tendo fechado os olhos, já desprezando todas as coisas humanas, repetiu até o derradeiro suspiro os mesmos versículos, mas tão baixo que mal podíamos ouvir.

Ao seu funeral compareceram habitantes de todas as cidades da Palestina. Não houve cela capaz de reter os monges escondidos no deserto, nem cela capaz de impedir as virgens, porque todos pensavam que cometeriam sacrilégio caso deixassem de render tributo a uma mulher tão extraordinária, até que seu corpo estivesse enterrado no solo da igreja ao lado da gruta em que nascera o Senhor. Sua venerável filha, a virgem Eustóquia, abraçada à mãe, não podia suportar que a separassem dela, e beijava-lhe os olhos, colava-se a seu rosto, cobria-a de carícias e desejou ser sepultada com ela. Jesus é testemunha que aquela mulher não deixou uma só moeda para a filha, e sim o encargo de cuidar dos pobres e de um grande numero de monges e de virgens que ela achava impiedade abandonar.

Adeus, Paula, ajude com suas preces este ancião que te reverencia”

 (“Legenda Áurea – Vidas de Santos” – Jacopo de Varazze – Companhia das Letras, págs. 209/214)

 


[1] Na realidade, a sua festa cai no dia 26 de janeiro.

[2] São Jerônimo refere-se ao fato de o nome da cidade natal de Jesus significar em hebraico “casa do pão” (betlehem, designação talvez derivada de um antigo culto local cananeu a uma divindade agrária), e ao fato de Jesus ser “o pão que desce do Céu e dá vida ao mundo”, “ser o pão da vida” (Jo 6, 33-35).

[3] Salmo 131, 7

[4] II Cor 8, 13-14

[5] Salmos 26,8 e 84,1