terça-feira, 30 de julho de 2024

SÃO AVES OU SERES HUMANOS DESPREZÍVEIS?



Às vezes a gente sonha acordado. Como se fosse um sonho, um anjo me apareceu e levou-me pelo ar até certa altura. De lá de cima pudemos ver o panorama de grande planície e uma floresta, no meio da qual havia um grande lago. Mais além, podia se descortinar um mar calmo, azul e muito bonito.

De repente, começaram a surgir vários bandos de aves, me pareciam belos guarás,  multicoloridas e de portes diversos, que pousavam no lago, algumas para beber água e outras para caçar peixes como alimento. Vinham e voltavam, sobrevoavam  e baixavam ao chão soltando lindos chilreados ou guinchos a depender da espécie. Mas, o que me chamou a atenção foi a beleza de suas plumagens,  o lindo colorido de suas penas. Como eram lindas! Vendo-as lembrei-me daquela passagem do Evangelho em que Nosso Senhor diz que nem Salomão com toda a sua riqueza vestiu-se com tanta riqueza e pompa. 

Repentinamente, começou a surgir algo diferente no meio dos rebanhos de aves. Aos milhares, apareciam entre elas algumas cuja plumagem estava manchada, enfeando completamente os animais.  Entre penas de lindas cores apareciam manchas pretas, ou, às vezes, o próprio couro do animal depenado naquelas partes. Ou havia cores feias ou então simplesmente a nudez de parte do corpo, ou, em casos raros, do corpo inteiro.

- Que horrível! Falei para o anjo. Então, na natureza existe isso? Deus não as fez tão belas, como é que aparecem assim desfiguradas e tão feias?

O Anjo, virando-se pra mim, respondeu:

- Não, o que vês agora não são mais aquelas belas aves. Embora pareça com elas, mas na realidade o que vês agora é apenas o que significa milhões de aglomerações humanas como se apresentam hoje. Deus fez os animais dotados de belezas naturais para manifestar a riqueza e a beleza da Criação, frutos do poder divino, mas aos homens Deus os fez de forma que eles mesmos possam tornar-se belos e admirativos, usando vestimentas e adornos que possam enriquecer suas personalidades perante Deus e a sua Criação. No entanto, por caprichos e por erros de apreciação do belo, pensam em se despir alegando conforto e refrigério do corpo. No entanto, tornam-se tão feios quanto os pássaros que se fosse possível aglomerassem nos pântanos e lagos a procura de alimentos, mas fossem enfeados por falta de penugem ou por alguma alteração na coloração original de suas penas.  Estes pássaros assim deformados representam os homens que hoje andam tão mal vestidos. Veja agora como é que andam multidões pelas ruas, ou em qualquer de seus aglomerados, especialmente  nas praias!  Não se igualam a pássaros depenados?

terça-feira, 23 de julho de 2024

ANÁLISE PROFÉTICA DA SITUAÇÃO DO MUNDO LOGO APÓS O FIM DA SEGUNDA GUERRA

 





O Dr. Plínio Corrêa de Oliveira acostumou-se a fazer análises de caráter profético desde a mais tenra idade, desde sua juventude. Foi assim que apenas uma semana após o fim da Segunda Guerra Mundial publicou um extenso artigo no jornal "Legionário" com penetrante análise da situação do mundo.


A GRANDE EXPERIÊNCIA DE 10 ANOS DE LUTA


1 - O término da conflagração mundial, e o esmagamento das potências totalitárias, não poderia deixar de ser assinalado pelo "LEGIONÁRIO" com uma edição consagrada, quase toda ela, ao grande acontecimento.

Com efeito, a derrocada final do totalitarismo marca, para nós, o termo de uma longa e dolorosa campanha, na qual fomos obrigados aos mais duros sacrifícios, para esclarecer a opinião católica sobre o tremendo perigo que ameaçava a Igreja. De 1933 a 1942, a vida do "LEGIONÁRIO" foi, a este respeito, uma verdadeira via crucis, ao longo da qual não houve provação que nos fosse poupada. De 1942 a 1945, a luta, menos ostensiva e menos direta, não deixou entretanto de se fazer veladamente. O fim da guerra vem encerrar todo esse passado, e abrir um futuro em que os problemas se apresentam radicalmente diversos. Aproveitemos estes instantes fugazes, em que os cadáveres ainda estão quentes, em que as lágrimas ainda não secaram, em que a terra ainda não sorveu o sangue dos combatentes, em que os incêndios ainda fumegam, e os canos das metralhadoras ainda não esfriaram, para fixar em um quadro geral ainda bem vivo, a recordação destes anos de confusão e de tormenta. É este o instante propício para tal tarefa. A experiência histórica é muito mais substanciosa quando colhida em um passado recente e palpitante, do que nos herbários secos e fanados dos compêndios e dos arquivos.

2 - Será, por exemplo, muito difícil que a História venha a compreender, tão bem quanto nós, a época agitada, crepuscular, indecisa, em que irromperam no mundo os partidos totalitários. É preciso ter vivido em 1920, ou 1925, para compreender o tremendo caos ideológico em que se debatia a humanidade. A Cristandade parecia um imenso prédio em trabalhos finais de demolição. Não havia o que não se fizesse para a destruir. Aqui, especialistas silenciosos e metódicos arrancavam uma a uma as pedras, desconjuntavam as traves, tiravam as portas a seus batentes, e as janelas às suas esquadrias. Essa faina, que faziam com o mutismo, a solércia e a agilidade de conspiradores, progredia com frieza inexorável, sem perda de um instante, sem desperdício de um segundo. Revezavam-se os operários, mas de dia e de noite, enquanto os homens se divertiam, dormiam, trabalhavam ou passeavam, o trabalho não se interrompia. Mais além, monstros de figura humana assaltavam os muros vetustos da Cristandade com o furor delirante e impetuoso com que se atacaria, não um edifício de pedra, mas um edifício de carne viva, um grande corpo. Era a escalada de multidões raivosas, que entravam pelas portas e pelas janelas, saqueavam relíquias indefesas e tesouros abandonados, arrebentavam vitrais, profanavam altares, destruíam imagens ou abatiam com um só estampido de dinamite torres centenárias, muralhas imensas, contrafortes até há pouco inexpugnáveis. E a alguma distância, aos aplausos dos "gravoches", dos vadios, dos petroleiros, outros operários, procuravam com o material roubado à Casa de Deus, construir em suas linhas extravagantes e sensuais, a orgulhosa Cidade do Demônio.

3 - Tudo isto não é senão alegoria. E não há alegoria, nem imagem, nem descrição que possa retratar a confusão daqueles dias de "post-guerra".

A conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O germe da vida sobrenatural penetrou no próprio âmago de sua alma, e foi paulatinamente configurando à semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A sociedade sobrenatural - A Igreja - estendeu assim sobre toda a Europa sua contextura hierárquica, e desde as brumas da Escócia até as encostas do Vesúvio foram florindo as Dioceses, os Mosteiros, as igrejas, catedrais, conventuais ou paroquiais, e, em torno delas, os rebanhos de Cristo.

Esta florescência religiosa projetou-se sobre a sociedade civil. O príncipe, o artesão, o filósofo, o guerreiro, o menestrel não era cristão apenas dentro do templo, no momento da oração. Ele reinava, produzia, pensava, guerreava e cantava como cristão. Seu reino era um reino cristão, seu trabalho era um trabalho cristão, seu pensamento era um pensamento cristão, sua guerra era uma guerra cristã, e seu canto era um canto cristão. Toda a vida civil, organizada com fundamento na Lei de Deus, ordenou-se segundo a vontade de Deus, e segundo a ordem natural por Deus estabelecida quando criou o universo, o mundo e o homem. Formou-se assim uma sociedade temporal estabelecida sob o signo de Cristo, segundo a lei de Cristo e conforme a ordem e a natureza própria de cada coisa criada por Deus.

4 - Tudo isto está longe de ser uma vã fraseologia. Exemplifiquemos com um relógio. O relojoeiro tem em vista fazer um instrumento para a marcação do tempo. Para isto, estabelece um plano em que se conjugam várias peças, trabalhando cada qual segundo seu feitio e natureza própria, para o fim visado pelo relojoeiro. Ora, a família é o instrumento humano de que Deus deseja a perpetuação da espécie. No caso do relógio, cada peça realiza o seu trabalho, atuando segundo a natureza e feitio com que a quis o relojoeiro. Se ela trabalhar segundo essa natureza e feitio, terá feito tudo quanto dela desejava seu autor, e tudo quanto era necessário de sua parte para o bom funcionamento do relógio. Assim também na sociedade doméstica: se cada membro agir retamente segundo sua situação e seu papel, terá feito tudo quanto era necessário para que a família funcione bem. E se todos os membros agirem com igual retidão, a vida doméstica terá chegado a sua perfeição própria: precisamente como o relógio atinge sua própria perfeição pelo perfeito funcionamento de cada uma de suas peças.

Ora, o mesmo que se diz do relógio ou da família pode dizer-se da sociedade civil. A sua grandeza própria, enquanto sociedade civil, resultará de que cada um dos elementos que a compõem, isto é, família, classe, associação, pessoa, atue retamente segundo seu feitio e natureza própria. E é este, e só este, o modo por que a sociedade civil chegará à sua grandeza.

Ora os Mandamentos são a expressão da vontade de Deus para os homens. Esses Mandamentos ensinam o homem a agir como Deus quer. Infinitamente sábio e bom, Deus não poderia querer que agíssemos em sentido diverso ou contrário da natureza que Ele nos deu. Assim portanto, os Mandamentos nos ensinam a proceder segundo nossa própria natureza. E eles contêm, pois, as regras fundamentais que se há de observar para conseguir a grandeza da sociedade civil, enquanto sociedade civil.

Esta glória e bem-estar temporal é o prêmio natural da sociedade civil. Mas ela tem, mesmo neste mundo, um prêmio mais alto. Explica Sto. Agostinho que os homens podem ser punidos ou premiados em outra vida, por suas ações boas ou más, mas que as nações recebem seus castigos ou prêmios nesta vida, porque a nação, como tal, não transpõe os umbrais da eternidade. No céu, haverá gregos, troianos, romanos ou egípcios. Não haverá nem Grécia, nem Tróia, nem Egito, nem Roma. Assim pois, é preciso que Tróia, ou a Grécia, ou qualquer outra nação receba seu prêmio neste mundo. Deus auxilia a grandeza dos povos fiéis, não só pelo jogo natural das causas segundas, mas por uma multidão de graças especiais e por vezes miraculosas, de que está cheia a História das nações cristãs.

5 - Isto explica porque, sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo lentamente do caos da barbárie na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade. Sua beleza, de início indecisa e sutil, mais promessa e esperança que realidade, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos de vida cristã, a Europa batizada "crescia em graça e santidade". Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos, e as estirpes fidalgas, os costumes corteses, e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis. Os admiradores da Idade Média se exprimem mal quando sustentam que o mundo atingiu nessa época o maximum de seu desenvolvimento. Na linha em que caminhava a própria civilização medieval, muito ainda haveria que progredir. O encanto grandioso e delicado da Idade Média não provém tanto do que ela realizou, como da harmonia profunda e da veracidade cintilante dos princípios sobre os quais ela construiu. Ninguém possuiu como ela, o conhecimento profundo da ordem natural das coisas; ninguém teve como ela o senso vivo da insuficiência do natural - mesmo quando desenvolvido na plenitude de sua ordem própria - e da necessidade do sobrenatural; ninguém como ela, brilhou ao sol da influência sobrenatural com mais limpidez e na candura de uma maior sinceridade. Ela foi feita de homens que lutaram e sofreram na realização desse ideal, e que na sua caminhada muitas vezes recuaram ou desfaleceram ao longo do caminho; mas de homens que sempre continuaram fiéis ao seu ideal, ainda mesmo quando dele se afastavam por seus atos. E daí uma consonância profunda de todas as instituições, de todos os costumes, de todas as tradições nascidas nessa época, não só com as circunstâncias contingentes e transitórias do tempo em que surgiram, mas com as exigências genéricas da alma humana "naturaliter christiana" e as tendências espirituais peculiares aos povos do Ocidente.

6 - Tocamos aí em um ponto de importância fundamental. Todos os povos tem sua mentalidade coletiva e seus problemas regionais. Entre um hindu e um sueco, um espanhol e um chinês, a diferença é enorme. Há um espírito nacional hindu, sueco, chinês ou espanhol, que permanece íntegro durante os séculos, enquanto a nação existir. Os homens, como os cursos de água, poderão ir correndo para a eternidade. Mas as nações, como os rios, continuam sempre os mesmos nos dados essenciais de seu temperamento. Além destas circunstâncias psicológicas, há problemas peculiares à situação geográfica de cada região: da Índia, da Suécia, da China ou da Espanha. Também estes problemas - ao menos os mais profundos e dignos de nota - são invariáveis.

Toda a civilização cristã há de ser inteiramente cristã, católica, universal, mas há de se ajustar, há de respeitar, há de desenvolver e estimular as características de cada região, e de cada povo.

A sociedade cristã, dissemos, é a que vive de acordo com sua própria ordem natural. E, por isto, ela há de respeitar integralmente as características regionais que pertencem à natureza de cada povo ou região. Respeitar e desenvolver, porque essas características são dons de Deus, e todos os dons de Deus merecem desenvolvimento.

7 - Nos séculos de civilização cristã, cada povo teve, pois, suas características próprias, bem definidas. A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais, encontrou plena e ordenada expansão dentro da civilização cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais, nas várias nações da Europa medieval.

A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem estar físico. A mentalidade nacional inspira a formação de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses símbolos são um patrimônio nacional, uma condição essencial para a sobrevivência e progresso espiritual da nação. Eles tem uma consonância indefinível e profunda com a mentalidade nacional, uma consonância que é natural e verídica, e não puramente fictícia e convencional. Por isto, em via de regra, cada povo elabora uma só arte, uma só cultura e nela caminha enquanto existe. O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade.

8 - Uma civilização cristã só pode ser admirada pelas almas que, fora da Igreja, tendem para o Catolicismo; só pode ser admirada e vivida pelas almas que, dentro da Igreja, vivem do Catolicismo. Ela é incompreensível, é cheia de tédio, é odiosa até em sua superioridade solar, para as almas que começam a abandonar a Igreja, ou que, do lado de fora, blasfemam contra ela. A civilização cristã só viveu plenamente, enquanto foi sincera e profundamente católica a Europa.

E a grande tragédia da civilização ocidental foi precisamente a ruptura com o Catolicismo que, no século XVI, arrebatou ao grêmio da Igreja as nações protestantes.

9 - Não é aqui o momento de fazer a análise do Protestantismo. Ele representou, ao pé da letra, a realização da Revolução Francesa no terreno religioso, como a Revolução foi o Protestantismo aplicado ao âmbito civil. Nascido do orgulho e da lascívia, o Protestantismo negou ora explicitamente in radice tudo quanto significasse autoridade, ordem, ascese. Onde pode, proclamou a abolição de toda hierarquia eclesiástica, nivelando inteiramente os leigos aos clérigos, e abolindo a própria clericatura. Onde não lhe foi possível ir tão longe porque os espíritos ainda tinham alguns fragmentos de senso cristão, conservou o presbiterato, abolindo entretanto o episcopado e a supremacia pontifícia, ou admitindo mesmo o episcopado mas negando o Papa. Mas, analisada a fundo a situação de qualquer bispo ou ministro protestante perante seus fiéis, vê-se que seu cargo é mais aparência vã, que realidade, e que mesmo entre os episcopais o bispo pouco ou nada se diferencia em essência, de qualquer fiel. Isto, na ordem do governo e dos sacramentos. Em matéria de doutrina, o livre exame protestante é a afirmação do anarquismo na vida da inteligência. O dístico de 1789 "liberté, égalité, fraternité", entendido segundo e exegese do "Comité de Salut Public", poderia ser perfeitamente o lema da grande revolução religiosa do século XVI.

10 - Em sua magistral Encíclica "Parvenu à la Vingt-cinquième Année", mostra Leão XIII que o Protestantismo não foi senão uma etapa. De seus princípios, se desdobraram convulsões muito mais profundas do que as que se operaram sob o bafejo pessoal e direto de seus autores. A História do mundo, do século XVI para cá não é senão, em forma ora explícita ora larvar, [a história do desdobramento] dos princípios que constituem o substractum mais profundo do Protestantismo. A Contra-Reforma conseguiu conservar os povos católicos indenes da heresia protestante. Impedidos de irromper abertamente no terreno do dogma, eles se manifestaram entretanto através de mil tendências filosóficas, científicas, literárias, artísticas, pelas quais se infiltravam na sociedade católica os princípios básicos de que se originara o próprio Protestantismo.

Nos chamados "Tempos Modernos", muita coisa continuou a ser feita pelos povos católicos dentro da linha da civilização cristã. Mas muita coisa começou a ser feita sob o signo da Desordem. O relaxamento geral dos costumes indicava bem um borbulhamento interior de sensualidade nos povos ocidentais, que se exprimiu a princípio de modo sentimental e figurativo, mas que foi aos poucos rompendo todas as barreiras, até chegar à grande explosão de concupiscência de 1789, às "orgias cívicas" de 1792, e à completa paganização dos costumes modernos. O contínuo deperecimento da família ia aos poucos aniquilando as classes sociais. Aristocracia, burguesia, plebe, eram, na Idade Média, corpos sociais vigorosos, coesos, perfeitamente definidos e cônscios cada qual (inclusive, note-se bem, a plebe que se gabava de suas linhagens multisseculares de carvoeiros ou de artesãos com a ufania com que um aristocrata lembrava os príncipes visigóticos de que descendia) de sua dignidade. Nos "Tempos Modernos", as classes perderam a noção de seu papel. A nobreza tendia a emburguesar-se. A burguesia em "singer" a nobreza, a plebe em derrubar a nobreza e a burguesia, e assim por diante. O próprio absolutismo real, que parecia a consolidação do princípio de autoridade, não era senão um princípio revolucionário: a onipotência do Estado perante as leis de Deus e da Igreja.

11 - Na Filosofia, nas artes, na cultura, na política, na vida social, os móveis psicológicos que haviam determinado em outros países a explosão protestante e concomitantemente sua completa transformação, provocaram a pari passu nos países católicos uma transformação profunda da vida civil, e geraram um estado de contradição que se tornou crônico e habitual. Tudo se transformou nos países ocidentais sob o sopro do orgulho e do sensualismo moderno, com exceção das crenças religiosas. O desajuste entre as crenças e a vida se tornou cada vez mais profundo. Tudo se paganizou por obra dessas massas e dessas elites que, entretanto, continuavam a não ser pagãs, e que professavam em matéria religiosa convicções cada vez mais dissonantes de tudo quanto pensavam, sentiam ou faziam em outros terrenos. As instituições cristãs, os costumes cristãos, as tradições cristãs foram perdendo sua vitalidade durante os Tempos Modernos, foram tendendo a se transformar gradualmente em relíquias sem vida, em hábitos meramente protocolares, em vestígios de um passado mumificado. Em fins do século XVIII, havia, sob a aparência de uma sociedade cristã, uma realidade social que já tendia para o paganismo com toda a força de seu dinamismo. A Revolução Francesa, que se propagou por todo o orbe católico, foi a explosão insofrida dessa realidade nova, que atirava para os ares todos as destroços do passado. Nunca se compreenderá inteiramente a Revolução, enquanto não se reconhecer que ela foi ainda muito mais profunda e importante no terreno ideológico que no terreno político. Na França, na Itália, na Espanha em Portugal, a transferência do poder para os liberais, o advento de formas novas de organização estatal, simbolizou e a um tempo realizou o triunfo de novas formas de viver, de pensar, de sentir, de trajar, novos padrões de vida social, o aparecimento de um novo ideal de perfeição humano. Tudo mudou de face e de substância, e todas as transformações se fizeram no sentido de satisfazer melhor o orgulho e a sensualidade. O orgulho, pelo direito conferido a cada qual, de elaborar seu próprio pensamento sem nenhum respeito às leis da lógica e do bom senso; pela supressão ou minimalização de todos os cargos, graus, fórmulas, categorias e distinções que pudessem conter ou exprimir a autoridade; a sensualidade, pela transgressão cada vez mais ousada dos princípios de moral, pela abolição das tradições e costumes que salvaguardavam o pundonor e evitavam as familiaridades demasiadas, e por mil reformas que, davam na vida social a preeminência ao corpo sobre o espírito, à imaginação e ao sentimento sobre a razão, a instauração de mil meios destinados a debilitar a vontade e diminuir o esforço da razão para estudar.

12 - É um erro supor que a Revolução Francesa se encerrou com Napoleão ou com Luís XVIII. De fato, ela se espraiou ao longo dos anos, e seus frutos mais imediatos não cessaram de se produzir até 1925 ou 1926, na Europa, até 1933 ou 1936 no Brasil. Façamos, pois, um confronto entre a Europa de 1789 e a de 1918. Ao longo desses 140 ou 150 anos, por que transformações passou o mundo na ordem de coisas que nos ocupa? Puramente negativas:

Em matéria de Religião, as massas, de cristãs passaram a revolucionárias, as elites, de deístas a indiferentes ou ateias. Em matéria de filosofia, do cartesianismo passou-se para o materialismo evolucionista. Em matéria política, do Estado organizado a Rousseau, para a negação niilista de todo e qualquer Estado. Em matéria social a burguesia destruíra a aristocracia em nome da igualdade; e armada do mesmo princípio a plebe se aprestava a estrangular por sua vez a burguesia. Em matéria educacional, do autoritarismo pedagógico da velha escola, para o igualitarismo socialista e para o comodismo didático da escola nova. Em matéria artística e literária, do classicismo rígido e formalista, para as convulsões do romantismo, e daí para as extravagâncias dos modernos sistemas artísticos. Em matéria humana, do tipo semi-tísico, sentimental e "debraillé" dos heróis e das heroínas do romantismo, para o esportivismo, o espírito utilitário, e a ultra-vitaminose dos grã-finos de hoje. Tudo se tornou mais cômodo, mais acessível, e o prazer que se procurou nas coisas foi muito menos do belo do que do "gostoso". O belo encanta o espírito. Mas o "gostoso" delícia o corpo. Das cadeiras elegantes do estilo Luís XVI para as pesadas poltronas de couro modernas, que diferença de beleza! Mas, em compensação, como se sente melhor o corpo estirado sobre a lisura destes couros, afagado pela flexibilidade destas molas! Evoluções todas bem dignas do tipo moderno de habitação, em que por economia se deixa de fazer sala de visitas, mas o luxo não conhece limites para a comodidade das cozinhas, das copas e dos banheiros. Economizar no salão de honra o que se vai gastar no banheiro! A decrepitude dos salões dourados e o apogeu do banheiro! Que tema para uma meditação!

13 - Em 1918 um novo sopro de espírito revolucionário varreu a Europa. Deu-se o imenso estrondo do desabamento do czarismo, e se implantou o comunismo na Rússia. Toda a vida intelectual e social se seccionou ainda mais do passado. No Ocidente, a hegemonia se deslocava cada vez mais da Europa tradicional para os Estados Unidos niveladores. Em meio a todo esse desabamento, que evidenciava cada vez mais o próximo término da civilização cristã como tal, uma salutar reação se produzia. Muitos espíritos percebiam por fim para que abismos caminhava o mundo, e quais os guias que os levavam para o abismo. Como escreveu Pio XI, um sopro universal do Espírito Santo orientava para a Igreja os espíritos transviados. Em plena hecatombe da civilização cristã, a Igreja de Deus, como a vara milagrosa de Gedeão, começava a florir novamente, produzindo rebentos que atestavam iniludivelmente sua eterna pujança. O movimento católico se organizava por toda Europa. Eram legiões de moços que, desgostosos do curso das coisas, abriam os olhos para a Verdade Revelada, e almejavam de todo coração o triunfo da civilização cristã. As obras sociais católicas, a imprensa católica, o radio católico, a ação política dos católicos triunfava por toda a parte. Assim, na Alemanha, na Áustria, na Espanha, na Itália, na França, no Brasil, na Holanda, na Bélgica, os êxitos eleitorais dos católicos eram cada vez mais estrondosos. E quanto mais crescia o perigo comunista, tanto mais se acendia o ardor da reação católica. A certas almas, Deus atrai ao Céu fazendo-lhes ver o Inferno. Foi dessa terapêutica que se serviu Deus com o mundo ocidental, permitindo que se lhe patenteasse em toda a hediondez a figura dos tormentos em que o comunismo mantinha a Rússia, o México e mais tarde a Espanha. Não há tormento maior do que esse de um povo a que se arranca dia a dia uma tradição, um hábito, um símbolo. É um esquartejamento terrível da alma, a que estavam expostos a pouco a pouco todos os povos cristãos.

14 - Sempre que o demônio está na eminência de perder uma partida, sua grande arma é a confusão. Utilizou-a ainda desta vez.

A História talvez diga, algum dia, em que antros o plano tenebroso se forjou. Mas o fato é que, para atender aos anseios das massas sedentas de civilização cristã, apareceu na Alemanha um partido logo copiado em outros lugares, que se propunha a implantar um novo mundo cristão. À primeira vista, nada mais simpático do que o nazismo, movimento místico-heróico, propugnador das tradições da Alemanha cristã e medieval, contra a dissolução demagógica e corruptora da propaganda bolchevista.

Os termos meramente negativos da doutrina nazista correspondiam em vários pontos com o que se sentia de mais vivo na consciência cristã, indignada com o enfraquecimento do princípio da autoridade, da ordem, da moral e do direito.

Mas, se se atentasse para o lado positivo dessa ideologia, lado que só aos poucos a maquiavélica propaganda parda revelava aos "iniciados", que terrível decepção. Ideologia confusa, impregnada de evolucionismo e materialismo histórico, saturada de influências filosóficas e ideológicas pagãs, programa político e econômico radical e caracteristicamente socialista, intoleráveis preconceitos racistas. Em uma palavra, por detrás dos bramidos anticomunistas do nazismo, era o próprio comunismo que se pretendia restaurar. Um comunismo ardiloso, de máscara cristã. Um comunismo mil vezes pior, porque mobilizava contra a Igreja as armas satânicas da astúcia, em lugar das armas inócuas e impotentes da força bruta. Um comunismo que começava por empolgar os espíritos por algumas verdades, punha-os em delírio sob pretexto de entusiasmo por essas verdades, e os atirava em seguida aos erros mais terríveis. Um comunismo, portanto, que significava, não a obliteração dos maus, mas dos bons, a mais terrível máquina de perdição e de mistificação que o demônio tenha engendrado ao longo da História.

15 - Tal é o peso da verdade, tão duro é o fardo do bem, que infelizmente muitos espíritos, embora sinceramente católicos, se deixaram transviar pela manobra. Não tinham aquela fome e sede de justiça, que é a raiz da santa intransigência. Não tinham aquele apetite de Catolicismo pleno, que os faria rejeitar como elemento impuro qualquer liga com os fermentos do século. As coisas muito acentuadamente católicas, declaradamente católicas, exclusivamente católicas, lhes pesavam como o sol fere a vista das aves noturnas. Preferiram as formas pálidas, diluídas, indiretas, de irradiação católica, como os mochos preferem a luz da lua. E se entregaram de corpo e alma a essas tendências de caráter nitidamente anti-católico. Na Itália, como na Alemanha, como em outros lugares, uma coorte de ingênuos, de desavisados, de pessoas entretanto bem intencionadas, se deixou embair e arrastar de roldão com facínoras e aventureiros de toda sorte. E só Deus sabe com que furor, com que iracúndia, com que abundância de ameaças se atiravam contra os irmãos de crença, que se permitiam o luxo de ser mais penetrantes, mais perspicazes, mais enérgicos na defesa da Fé.

16 - Ruiu o grande sonho, está em pedaços a terrível construção elevada pelos arquitetos dos sistemas totalitários pseudo-cristãos. Hoje em dia, ninguém ousaria sustentar a legitimidade dessa posição contra a qual clama todo o sangue que se derramou, todas as lágrimas que se choraram, todo o suor que se verteu nestes anos de guerra. Quando os campos de concentração forem expostos à visitação pública, e se perceber que terrível oficina de ódio era o totalitarismo, é de se esperar que as últimas vendas caiam dos últimos olhos voluntariamente cegos, e que por fim os escombros e os restos de todo esse passado sejam removidos dos últimos espíritos que o fanatismo ainda mantém em uma atitude de obstinação desvairada.

17 - Mas, como dissemos, desse passado ainda quente, se desprende uma grande lição. É inútil querer fazer sem a Igreja ou contra a Igreja, sem a hierarquia ou contra ela, a obra de Deus. "Enquanto o Senhor não edificar a cidade, trabalharão em vão os que construírem". "Enquanto Ele não a proteger, lutarão em vão os que a guarnecerem". O mundo não pode ser salvo por formas diluídas de Cristianismo, ou por sistemas que representem uma etapa comodista ou preguiçosa nas sendas da restauração da Cristandade. Nosso "leitmotiv" deve ser o de que para a ordem temporal do Ocidente, fora da Igreja não há salvação. Civilização católica, apostólica, romana, totalmente tal, absolutamente tal, minuciosamente tal, é o que devemos desejar. A falência dos ideais políticos, sociais ou culturais intermediários está patente. Não se para no caminho de volta para Deus: parar é retrogradar, parar é fazer o jogo da confusão. Nós só queremos uma coisa: o Catolicismo completo.

18 - Esta a grande verdade que o fracasso do totalitarismo revela. Relembramo-la nesta ocasião memorável, não para reavivar dissídios com irmãos de crenças, mas para declarar que, excetuada esta grave lição que contém o suco de toda a trágica experiência destes últimos anos tão ricos em ensinamentos, tudo esquecemos, e que só queremos olhar para o futuro. Do passado não trazemos nem queixa, nem ressentimentos, mas apenas a convicção da vitória desta tese, que deve ficar: os católicos vencerão desfraldando inteiro o estandarte católico e não ocultando-se sob as dobras de doutrinas políticas equívocas.

19 - Aí está diante de nós, hiante, o grande problema do comunismo. Mais uma vez, e com uma acuidade maior do que nunca, exige-se a luta contra a hidra que representa, tanto quanto o nazismo, a quintessência do espírito da Revolução. Os católicos devem unir-se diante do adversário comum, esquecidas todas as queixas e todos os ressentimentos e, consoante o ensinamento de Pio XI, devem aceitar a leal colaboração de todos os homens dignos, que estejam sinceramente empenhados na luta contra o totalitarismo rubro. Mas o segredo da vitória da Igreja consiste precisamente nisto: renunciarmos aos ideais intermediários, e, ligados a todos os que nos ofereçam sua cooperação, vencer a hidra bolchevista com a única arma que a esmagará: a Cruz, que representa a Igreja de Deus e as mais antigas e legítimas tradições da civilização cristã.

"In hoc signo vinces"[1] disse uma Voz a Constantino num momento em que parecia incerta a sorte das armas. Essa Voz não se calou durante quinze séculos, e ainda hoje é a mesma a sua mensagem para o mundo hodierno.

 

(Legionário, 13 de maio de 1945)

 

 

 



[1] Com este sinal vencerás.

terça-feira, 16 de julho de 2024

ELITES INAUTÊNTICAS – A “SAPARIA”

 


 Na edição americana do livro “Nobreza e Elites Tradicionais Análogas nas Alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana”, de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira, foi publicado um apêndice sob o título de ESTADOS UNIDOS: NAÇÃO ARISTOCRÁTICA NUM ESTADO DEMOCRÁTICO”, discorrendo sobre as origens e atual situação das elites dos Estados Unidos da América, onde existe uma falsa elite que ele a denominou de “saparia”, e de “sapos” aos seus membros, notando, inclusive, que esse fenômeno é mundial e que a “saparia” existe em todos os países modernos.

Transcrevemos a seguir como Dr. Plínio define os “sapos”:

 

“Elites inautênticas

Qualquer estudo sobre as elites, nos Estados Unidos, depara-se com um problema, que é o das elites inautênticas. As elites do país são o resultado de um processo de refinamento na sociedade, e representam, em certo sentido, o que o país tem de melhor e mais elevado. Porém, é inegável que numerosas pessoas de elite têm mentalidade francamente revolucionária, e que certos grupos de elite são os paladinos das transformações de caráter liberal e socialista em vários campos. Também é inegável que tais pessoas e grupos assumem, com frequência, atitudes de simpatia frente ao comunismo internacional.

Uma elite inautêntica pode possuir o patrimônio relevante ou a notoriedade pública, inerentes às elites autênticas, sem no entanto possuí-los há tempo suficiente para que deles resultem os predicados característicos das elites autênticas. Ou sejam, a largueza de horizontes, a excelência de tipo humano e de trato e a delicadeza de sentimentos que as distinguem.

Pode até acontecer que numa elite inautêntica exista um passado suficientemente longo para lhe proporcionar todos os predicados de uma elite autêntica e tradicional. Mas que esse grupo, movido por preconceitos ideológicos ou outros fatores, tenha preferido manifestar — ao lado de maneiras distintas, educação esmerada, e até hábitos aristocráticos — uma ideologia revolucionária e uma mentalidade democrática liberal, tendente a promover um Estado paternalista, em detrimento dos corpos sociais intermediários.

As elites inautênticas constituem verdadeiros corpos estranhos na tradicional contextura social de um país. E podem até formar, a respeito dos verdadeiros direitos e interesses do mesmo, uma noção tão anti-natural que chegue ao ponto de colaborar largamente com os adversários mais radicais e mais declarados desse país.

Ao fazer uma defesa genérica das elites, portanto, poder-se-ia perguntar se os autores da presente obra não estariam, ainda que implicitamente, favorecendo a ação demolidora destas elites liberais.

 

a. A "saparia"

4 - O termo "sapo", com a conceituação que é desenvolvida no presente item, foi lançado em artigo do Professor Plinio Corrêa de Oliveira, publicado no diário "Folha de São Paulo", em 25-6-69.

Antes de tudo, parece necessário deixar bem claro que — ao tratar da questão das elites nos Estados Unidos — os autores as distinguem das elites artificiais ou inautênticas. Estas se apresentam sem ligações naturais com as melhores tradições deste país e os mais profundos anseios do povo norte-americano, chegando mesmo a contrariar essas tradições e esses anseios.

Dado que a distinção entre uma elite tradicional autêntica e tais elites espúrias nem sempre está presente com a devida nitidez no espírito de incontáveis pessoas, parece indispensável incluir o presente item explicativo.

Os estudos sociológicos citados mostram que existem elites tradicionais nos Estados Unidos, constituídas a partir de antecedentes históricos próprios a cada lugar. Essas elites têm ainda hoje uma influência social marcante sobre o conjunto da sociedade norte-americana, especialmente nas suas capilaridades.

Porém, muitas vezes os postos diretivos do Estado, das altas finanças, das grandes empresas, da mídia, das fundações e dos órgãos culturais, são ocupados por pessoas que não pertencem a elites autênticas, mas constituem uma espécie de contra-elite que faz ostentação de princípios, de idéias e de um estilo de vida em dissonância com o modo geral de pensar e de agir da maioria da população.

Estas elites inautênticas, longe de representarem a nação, nela constituem quase um corpo estranho, aparecendo aos olhos do público de modo muito mais visível — e, sob certos aspectos, mais brilhante — que as elites tradicionais. Elas ocupam muito maior espaço nos órgãos de publicidade e ofuscam o realce que as verdadeiras elites deveriam ter.

Assim, formou-se na mente de numerosos norte-americanos a idéia de que elite é só isto, podendo daí advir em muitos uma injustificada antipatia às elites in genere, em vez de uma não raras vezes explicável antipatia dirigida apenas contra as falsas elites.

Para simbolizar o perfil moral e psicológico do tipo humano de tais elites inautênticas — existentes nos Estados Unidos, como em quase todo o Ocidente — tomou curso no linguajar corrente das TFPs a palavra "sapo", e ao conjunto dos sapos a denominação coletiva de "saparia".

Em geral, o "sapo" nasceu da Revolução Industrial. Ou seja, ele é o fruto — artificial, sob certos pontos de vista — de uma economia de base industrial que gerou fortunas excessivamente grandes, sem proporção com a massa geral dos patrimônios individuais do país. Estas fortunas podem ser de natureza industrial, financeira, e mesmo artística ou esportiva, como no caso de certas personalidades do cinema, da televisão e dos esportes.

Há um tal desequilíbrio entre os "sapos" e os outros níveis econômicos da população, que eles parecem viver numa espécie de estratosfera em relação ao restante do corpo social, levando uma vida econômica e socialmente desproporcionada às suas origens e ao seu nível cultural.

Pode haver também um tipo de "sapo", igualmente rico, descendente de famílias tradicionais, de aparência aristocrática, mas que usa de sua posição e de seu prestígio social para favorecer a implantação de reformas de caráter liberal e igualitário.

 

b. Caráter malfazejo da "saparia"

Nessas condições, o "sapo" — a expressão pode ser forte demais — é quase um câncer no corpo social. Longe de ser o coroamento de uma hierarquia harmônica de elites, a "saparia" dá ensejo ao estabelecimento no país da própria estrutura de poder, de influência e de prestígio dela, sem imbricação com os demais níveis de elites. O peso dessa estrutura anti-natural acaba por prejudicar seriamente aquilo que deveria ser uma sadia e equilibrada vida política, econômica, social e cultural da nação. Mesmo que, individualmente, os membros desta contra-elite possam não ter essa intenção, o próprio dinamismo do sistema por eles dirigido acaba conduzindo a este fim.

Assim como o último degrau da escada deve ter proporção com os degraus anteriores, a elite verdadeira deve ter proporção com os outros elementos do corpo social. Uma escada em que o último degrau fosse exageradamente mais alto que os outros, tornaria a escada inutilizável.

Nas sociedades modernas e industriais, este último degrau exageradamente alto teve sua origem, muitas vezes, em fortunas desmedidas, acompanhadas de um poder, de uma influência e de uma cobertura publicitária igualmente desmedidas. Os possuidores de tais fortunas, sejam eles indivíduos ou empresas, famílias novas ou antigas, têm haveres e interesses em muitas regiões do país e em diversas partes do mundo, escapando assim aos limites naturais e sadios da propriedade privada, e constituindo quase estados dentro do Estado.

Pela amplitude que tomam, estas contra-elites acabam gerando em seus membros uma mentalidade característica, que leva ao ceticismo geral no terreno doutrinário, com desprezo por tudo quanto representa idéias, maneiras e tradições de uma Civilização Cristã. Leva também a uma exclusiva valorização do poder e do status que a super-fortuna confere, como meio para exercer uma ação a seu modo tirânica sobre o país.

Este conjunto de super-fortunas supra-nacionais, sejam elas individuais ou societárias, forma no cume da vida econômica do país uma trans-elite, que mais se assemelha a uma "nomenklatura".

 

c. Os "sapos" e o comunismo

Ao observar como foi o comportamento desta "saparia" nos países capitalistas ocidentais, em relação ao mundo comunista, constata-se um fato perplexitante: Longe de estar na liderança de uma ampla ação contra o comunismo internacional — como sua condição pareceria exigir — os membros da "saparia" se mostraram concessivos frente a ele, sempre prontos a negociar, a abrir-lhe os cofres do crédito ocidental, a aplainar-lhe o caminho em tudo que fosse possível.

Esta atitude foi uma das características mais chocantes de tal contra-elite. Pois ela frequentemente se dispôs a salvar de seu fracasso um regime que sempre fez questão de se apresentar como o pior inimigo do capitalismo. Foi o caso, por exemplo, de titulares de grandes patrimônios, que destinaram à Rússia comunista, até mesmo nos períodos de tensão daquele país com nossa pátria, recursos econômicos indispensáveis para a sobrevivência daquele regime.

Embora a explicação mais profunda deste fato seja bastante complexa, e até enigmática, para ser exposta em poucas linhas, é certo que um dos fatores que mais pesou para essa atitude foi a semelhança entre o papel desta "saparia" nos regimes capitalistas ocidentais e a "nomenklatura" nos Estados comunistas. Realmente o super-poder do Estado comunista, dotado de uma capacidade de ingerência em todos os campos da vida humana, tem muito de parecido com o super-poder de que esta contra-elite goza em países do Ocidente. Assim sendo, a nomenklatura é uma imagem da "saparia" dentro do regime comunista.

Não é de surpreender, portanto, que entre duas "elites", tão afins sob certos aspectos, as barreiras ideológicas se transponham com facilidade, e que a "saparia" capitalista ocidental mostre simpatia para com sua congênere — que é ao mesmo tempo sua antítese — do capitalismo de Estado”.

 

terça-feira, 9 de julho de 2024

O SONHO DO REVOLUCIONÁRIO E SEU ARREPENDIMENTO

 



             Transcrevemos a seguir um pequeno conto onde se demonstra que o anseio de liberdade nem sempre termina bem para quem o busca. Como diz um velho ditado: o demônio nunca dá o que promete [1]

 

Amélia Rodrigues[2]

Aquele tresloucado Fulgêncio tinha fugido da casa de seu senhor.

E, todavia, o seu senhor era bom; tão bom que não se podia absolutamente imaginar outro ideal de senhor. Criara o servo em seus braços, desde pequenino; tratara-o nas moléstias; dera-lhe a alegria da infância, prados em que corresse, afetos que o confortassem; ensinara-lhe muitas coisas úteis, letras e artes; mostrara-lhe as fontes puras da felicidade perfeita...

Mas, apenas o servo ficou rapaz, leu ou disse-lhe alguém que a servidão era uma coisa triste e feia e cruel, mesmo naquelas condições honrosíssimas; sopraram-lhe aos ouvidos a palavra “liberdade”, e essa palavra agitou-lhe os nervos, num deslumbramento contínuo.

- Foge!... quebra as cadeias! Governa-te a ti mesmo, infeliz! Não curves a cabeça a poder algum! És dono de teu ser, de teus sentidos, de tua vontade. Oh, que bela conquista, a independência!

Assim lhe cantara dentro do cérebro a voz da mocidade, o sangue quente dos desejos sôfregos e, fora, a voz tentadora de outros libertos.

Contudo, uma réstia de luz  teimava em atravessar-lhe a mente O seu olhar inquieto espraiava-se longe, examinando o mundo.

- Ser livre!... fazer o que quiser, sem dar contas a ninguém!... Sim, deve ser essa a felicidade completa. Posso fugir, posso; mas... onde irei que deixe de ser servo?

Em toda parte há tiranos...

- Entrarás pelas brenhas... beberás a chama do sol e os aromas da natureza virgem, grandiosa, embriagante. A natureza é tua mãe, portanto deve ser a tua única senhora. No seio dela serás rei, forte como os leões, alcandorado como as águias, dormindo embora ao relento, mas respirando a plenos haustos a ventania dos píncaros ou a brisa meiga dos vales...

E o servo sonhou, noites e noites mal dormidas, com o espectro do sol da Liberdade, um espectro em forma de mulher a sorrir, com veste de íris e largas asas de borboleta espalmadas no horizonte sem fim... e de seus lábios espiralou um hino, um grito, apóstrofe:

- Oh Liberdade! És minha deusa, eu te adoro!

A face amorável do senhor tornou-se-lhe odiosa; a casa parecia-lhe estreita, mesquinha, deprimente, sem futuro, sem atrativos; a comida já não tinha sabor: os companheiros de lavoura davam-lhe tédio, com os seus ares de calcetas imundos e simplórios...

          *                            *                                  *

           Fugiu. Internou-se nos matagais. Comeu frutos áureos e doces, pendurados em ramos de esmeralda. Bebeu água cristalina em rios mansos, à sombra de cipoais em flor; embriagou-se com o sono de bromélias ardentes ou com o cheiro capitoso das palmeiras novas; ouviu trinados de aves, fragor de trovões, estrondo de torrentes a cair espumando prata...

E julgou-se feliz, e cantou, com voz de stentor que atroava em penedias e vales, o hino que o seduzira:

- Oh Liberdade! És minha deusa, única! Eu te adoro!...

                *          *          *

Passaram os tempos – tudo passa!... -  e mudou-se o cenário. Já não eram tapetes de relva, eram seixos agudos que os seus pés encontravam. Fez-se noite no céu; fez-se noite nos campos. Rugiam-lhe em torno panteras e tigres, de olhar vermelho e dentes a ranger...  Alapardava-se em furnas lobregas para dormir, se dormia. Tinha fome e sede, e já não achava nem frutos, nem água fresca rolando em pérolas na concha azul da rocha ao seu alcance...

Deu, depois, em brejos negros, em charnecas áridas. Mordiam-no insetos, serpentes se lhe enrolavam no corpo, asquerosas, geladas, cortantes... A roupa lhe caíra em pedaços...

E vinha-lhe à memória um retalho de versos lidos outrora, o diálogo entre o Lavrador e o Peregrino, do grande poeta luso[3] que, com outros, lhe ensinara o amor à Liberdade:

 

O Lavrador

Ó Senhor tão moço, d’olhos cor d’esperança,

Ides de caminho para algum lugar?

O Peregrino

Vou dar volta ao mundo...

O Lavrador

Sem arnês ou lança?

Ó Senhor tão novo, d’olhos cor d’esperança

Penas e misérias é que ireis achar!

 

Quais seriam esse arnês e essa lança tão preciosas ao combate da vida? A fé talvez?... Mas a fé, sobretudo a fé cristã, já não fizera branca-rota? Assim lh’o tinham afirmado os companheiros de prazer. Mesmo aquele poeta...

Não! ... a fé traz consigo a lei; a lei é uma cadeia: não pode ser elemento da felicidade. Para ser feliz... basta ser livre!...

 E suspirou, repetindo:

- Liberdade, és minha deusa única.  Eu te adoro!

 

                            *                      *                      *

           Caiu um dia, enfim, exausto, quase morto, no fundo de paulento barranco. Lá ficou só, muito tempo. Seus amigos, os pássaros, voavam longe; suas namoradas, as flores, perfumavam outros viandantes. A fome era atroz, o frio era intenso... Sentia-se velho, alquebrado, incapaz de um esforço. O desespero retorcia-lhe os membros; clarões de raiva impotente lhe passavam nos olhos.

E gemia:

-Oh! Natureza! Não és tu minha mãe? Não foi de ti que nasci? Por que me matas? Qual foi meu crime? Amar a liberdade?... Mas a liberdade não é direito do homem? Teu maior e mais belo direito? Eu quis viver com teus filhos todos, Natureza! Os filhos que ficam no teu ninho, apegados contigo! E morro sem que tu me consoles. Mas a vida não é um dom teu, um dom que eu devia, até o fim, aproveitar para o gozo, como os meus irmãos animais?

E rugia, mordendo a lama, sentindo nos membros trôpegos o contato dos vermes.

- Meus irmãos todos são felizes em ti, mãe Natureza, quando o homem não os faz sofrer. Estes vermes que comem vasa... estes lagartos cinzentos que moram nos troncos podres... Por que razão só o homem, teu filho mais nobre, mais rico e perfeito, só o homem te encontra dura, cruel, indiferente aos gritos de fome... ou de gula?... Por que razão?

Veio-lhe um calapso[4], um momento de trégua na sua agitação. Fez-se-lhe algo de bonança no cérebro; pensou mais calmo e recordou:

- Eu era servo. Sou servo ainda. Não há fugir à lei que me prende. Todavia, lá em casa, era servo-filho. Aqui... sou servo-escravo. Escravo estrangeiro... miserável... esmagado.  Lá... não me faltava nada. Tinha tudo, tudo o que podia ter com justiça e legítimo prazer. Desejei mais do que isso. A visão da Liberdade estonteou-me.  Oh, sim!... ser livre!... Mas... livre como? Eis preso de novo, e sempre pior. Livre para que, afinal de contas, se lá meu senhor me amava e aqui não tem quem me ame; se lá eu tinha alimentos e aqui morro ao desamparo; se lá eu sorria inocente, aqui choro de remorsos, sem ter quem me enxugue as lágrimas... Li outrora, no Evangelho de Cristo, a página do Filho Pródigo. É justamente o meu caso. Ele voltou à casa paterna. Voltarei também?... Por que não?... Meu Senhor é tão bom! Farei um esforço para sair desta lama. Sim, bastará um esforço...

E, animado, puxou os pés que estavam presos ao barro pegajoso. Sorriu. A recordação da casa onde vivera a infância perpassou-lhe no pensamento, em traços fortes e consoladores.

Viu-a, toda branca, lá longe, - qual em contos de fada, a luzinha d’oiro no cimo da montanha, dizendo ao perdido nas trevas que em seu seio havia um abrigo. Como se lembrava!... Aqui era o pátio vasto... os jardins cheios de angélicas; ali o milharal espigando... os parreirais pesados de uvas... e pertinho, o lar, a chama alegre da lenha seca, o cheiro da sopa quente após a labuta diária...

Suspirou. Olhou em torno e sentiu repugnância. Desprendeu as mãos do paul, fraco, trêmulo, receoso, mas com brilhos de esperança no olhar. Queria subir a montanha, entrar novamente naquela mansão de paz e conforto.

Em seguida olhou para si mesmo e... teve horror.

- Estou nu – murmurou – tenho a pele coberta de escaras, chagas ainda... crostas de barro... Sinto que as pernas se me vergam. É tarde!... É tarde... não posso...

Agachou-se no chão, desesperado.

- Ele me expulsará, por indigno. Afastará de mim o seu rosto!... Não vou. Morrerei aqui. Pelo menos, tudo isto é meu. Pedras, lodo, bichos nojentos, tudo é meu. Acostumei-me ao cheiro bruto destas coisas corruptas... cheiro que outros chamam fétido e eu chamo perfume. E nisso gozo ainda minha liberdade. Sou livre, chamo-lhes como me apraz!

Pendeu a fronte, fechou as pálpebras... e apesar disso via ao longe, via sempre a luzinha da casa senhorial, tão meiga, tão suave, em cima da montanha...

- Ali está o perdão, o amor, a paz... bem o sei; não posso calar, no meu íntimo, a voz que m’o diz. Meu senhor é bom... infinitamente bom... Que importa? Se a liberdade é a guerra, quero a guerra, porque adoro a Liberdade!

Engalfinhou as mãos na borda de um calhau limoso e escorregou de novo no tremedal. Sentia vertigens mórbidas... sabia que estava louco, absolutamente louco, mas deixou-se descer...

E desceu... e a luzinha continuava a brilhar, muito quieta, pondo um fio de ouro na escuridão ambiente, fio que vinha tocar quase a cabeça de Fulgêncio.

Ele percebeu, e chorou.

- Meu Senhor!... Oh, meu Senhor!... tu me chamas?... Por que te fugi?!... Onde estás?!... Anda... vem cá... ah, não!... não venhas!... Fica em tuas alturas... Apaga essa luz... Tira-a de cima de mim!...  Não quero vê-la... não quero!... É a razão, é a fé!... Mas aqui estou cativo em redes fatais... Agora essa luz!

E a luzinha apagou-se... e Fulgêncio afundou-se ainda mais no barranco negro...

Extinguiu-se-lhe a consciência, a idéia da vida moral. Engoliu vasa, e achou-a gostosa. Sentiu sanguessugas no peito e acho delícia em suas mordeduras. E foi descendo... até que a vasa o sepultou para sempre...

 

*                            *                                  *

 

 Fulgêncio,  o servo, é a alma pecadora – a alma do século de hoje.

Feita para Deus, ela foge de Deus, atraída pela voz de sereia da falsa liberdade.

Foge de Deus para gozar à larga, e afunda-se nos pântanos mais asquerosos; torna-se vil, e nem percebe a própria degradação, ou percebe-a fracamente.

Coitadinha!

A luz da graça lhe aparece enfim, no cimo da montanha da fé. É a única estrela na sua noite pesada de treva e de abandono. Ela a vê, suavíssima; compreende-a, deseja ir até onde está a mansão salvadora, mas o vício, o mau hábito da rebeldia a tem cativa, a ela que sonhara ser livre, inteiramente livre!

Precisamente. Será sempre escrava, e da pior das escravidões.

Ah! Se ela voltasse ao lar donde fugira, ao coração de seu Senhor e de seu Pai, que feliz seria de novo!...

Almas que refulgistes ao sair do batismo cristão e por desgraça agora estais caídas nos charcos do mal, coragem! Quebrai os laços, desprendei-vos da lama, e subi, montanha acima, até os braços do vosso Criador. Ele vos espera e há de receber-vos em festa e coroar-vos de rosas imortais.

Homens do século de hoje, Fulgêncios sequiosos de gozo e de independência, não esqueçais que a verdadeira liberdade é a dos filhos de Deus. Procurai o reino de Deus, se quereis ser livres e atingir o vosso alto destino.

 (Transcrito de “Do Meu Archivo – Contos e Phantasias” – Livraria Editora N. S. Auxiliadora – Salvador(BA), 1929 – págs. 208/216)

 


[1] O título original é “O Sonho de Fulgêncio. 

[2] Amélia Rodrigues foi uma escritora católica baiana, muito ligada aos Salesianos, falecida no início do século XX, que se dedicou em escrever contos de formação religiosa para a juventude. Não confundir com outra do mesmo nome que foi compositora do século XVIII.

[3] Trata-se da obra “Os Simples”, de Guerra Junqueiro

[4] “calapso” é como consta no original; seria “colapso”?