Havia na cidade um tal de Cipriano que praticava a
bruxaria desde sua infância. Quando tinha apenas sete anos de idade seus pais o
haviam consagrado a Satanás. Por causa disso, e havendo se dedicado com afinco
à bruxaria, detinha grande poder diabólico.
Era tão hábil em suas mágicas e bruxedos que conseguia realizar coisas
extraordinárias, como transformar pessoas em animais.
O bruxo Cipriano e um companheiro seu chamado
Acladio apaixonaram-se perdidamente por Justina. Cipriano recorreu a diversos
artifícios de bruxaria para ver se a donzela aceitava ter relações torpes com
ele, ou ao menos com seu companheiro Acladio, mas
O demônio respondeu:
- Claro que sim! Se pude expulsar o homem do
Paraíso e fazer com que Caim matasse seu irmão Abel, e que os judeus
crucificassem a Jesus Cristo e que as pessoas andem revoltadas, como não
poderei obter que uma simples donzela caia em teus braços e possas fazer o que
quiser com ela? Toma este ungüento, espalha-o pelo chão da rua em frente à sua
casa; logo passarei por ali, inflamarei o coração da jovem de amor por ti e a
inquietarei de tal modo que ela mesma te buscará e se lançará em teus braços.
A partir do momento
- Como? Não
vens trazendo contigo Justina?
Ao que o diabo respondeu:
- Tentei trazê-la, porém quando o estava
conseguindo ela fez sobre seu corpo um sinal e eu me fiquei de repente sem
força e tremendo de medo.
Cipriano, irritado, despediu aquele demônio e
invocou ansiosamente a ajuda de outro que fosse mais poderoso que o que acabava
de despedir. Apresentou-se outro ante ele e lhe disse:
- Já sei do que se trata. Ouvi o encargo que
fizeste a meu companheiro e vi que não foi capaz de realizar sua missão. Porém
não te preocupes; eu farei o que ele não fez e conseguirei que se cumpram seus
desejos. Me apresentarei ante a jovem e desencadearei em seu coração uma paixão
tão violenta que ela se entregará a ti e tu desfrutará dela quanto queiras.
Este segundo diabo aproximou-se de Justina e tratou
de acender em seu corpo o fogo da concupiscência e de despertar em sua alma
amores impuros; porém Justina novamente se encomendou ao Senhor, persignou-se,
rechaçou a tentação, soprou sobre o espírito do mal, e este, da mesma forma que
o outro, fugiu dali confuso e envergonhado; e, como seu companheiro,
apresentou-se a Cipriano, que lhe perguntou:
- Onde está a donzela que prometeste trazer-me?
- Reconheço, respondeu o demônio, que fui vencido,
e até medo me dá dizer-te como me venceu: traçou sobre seu corpo um sinal
terrível e quando fez isso me deixou sem forças.
Cipriano, mofando do segundo diabo, o despediu, e
em seguida chamou ao próprio chefe dos demônios, que logo atendeu a seu
chamado. Ao vê-lo, Cipriano lhe disse:
- Como é que tua gente é tão pusilânime e covarde
que se deixa vencer por uma jovenzinha?
O recém chegado lhe respondeu:
- Deixa este assunto por minha conta. Eu irei
pessoalmente resolvê-lo. Me apresentarei ante ela, a atormentarei com
altíssimas febres, provocarei em seu ânimo uma violentíssima paixão, acenderei
em seu corpo um ardente fogo de irreprimíveis desejos, a farei ver visões
lúbricas, conseguirei que se excite freneticamente e à meia-noite te a trarei até aqui.
Logo em seguida o príncipe dos demônios começou a
executar seu plano. Adotou a aparência de uma donzela, apareceu perante Justina
e lhe disse:
- Venho ver-te porque quero que me ajudes a viver
em perfeita castidade. Sinto vivíssimos desejos de praticar fidelissimamente
esta virtude, porém às vezes me assaltam dúvidas deste teor: em troca do muito
que é preciso lutar para conservar a pureza que recompensa receberemos?
Justina declarou:
- Não são tão grandes estas lutas; eu não vejo que
custe tanto conservar a virgindade; por
outro lado, estou segura de que o prêmio que receberemos por isto será muito
valioso.
- A mim me preocupa muito - continuou o demônio -
esse mandamento divino que diz: "Crescei e multiplicai e enchei a
terra", e a miúdo penso, minha boa amiga, que nós, ao apegarmo-nos ao
propósito de viver virginalmente, estamos desprezando este preceito, obrando
contra a vontade de Deus, desobedecendo a Ele e enganando-nos a nós mesmas. Às
vezes me assalta o temor de que quando chegue a hora do Juízo vamos nos
encontrar com a terrível surpresa de que, em lugar dos prêmios em que
confiamos, receberemos o castigo da eterna condenação por haver negligenciado
um mandamento divino tão claro.
Estas considerações turbaram a paz interior de
Justina. A jovem, atormentada pelo demônio, começou a sentir maus pensamentos e
torpes desejos cada vez mais fortes e mais desonestos, até o ponto de que em
determinado momento esteve prestes a abandonar seus propósitos de castidade; porém naquele crítico instante caiu em si de
que estava sendo tentada pelo espírito maligno, persignou-se, soprou sobre a
visitante e ficou atônita ao ver que a que parecia virtuosa donzela se derretia
repentinamente como se fosse de cera, e que ela, livre já de maus pensamentos e
de desejos impuros, recobrava plenamente a paz interior e o sossego de seu
corpo e de sua alma.
Mas, em poucos instantes, o mesmo demônio
apareceu-lhe novamente, desta vez em forma de um formosíssimo mancebo que se
aproximava de seu leito, se lançava sobre ela e tentava abraçá-la. Justina
recorreu a seu poderoso remédio, persignou-se novamente e, enquanto o fez, o
jovem galhardo, como se fosse de cera, derreteu-se da mesma forma que a antes
fingida amiga. Mesmo com este segundo fracasso, Satanás ainda não se rendeu.
Deus permitiu-o seguir tentando a donzela, que o fez desta forma: o espírito
maligno desencadeou uma terrível epidemia na cidade de Antioquia. Justina caiu
enferma com altíssima febre. A peste propagou-se pela comarca e causou a morte
de muitas pessoas e de infinidade de animais domésticos. A região ficou quase
sem ovelhas e sem vacas. Os demônios fizeram correr a voz entre a gente de que,
se Justina não se casasse, viriam sobre a cidade e o país outras calamidades
maiores. Os moradores de Antioquia, sobretudo os doentes, começaram a acudir em
massa à porta da casa dos pais de Justina e pedir a eles, aos gritos, que
casassem sua filha o quanto antes e livrassem as pessoas dos grandes males que
estavam padecendo.
Justina suportou com firmeza a pressão a que estava
submetida, e se negou a aceitar o que se lhe propunham. Em vista de sua
negativa, o povo, sublevado e irritado, apinhava-se em frente de sua casa
proferindo constantemente ameaças de morte contra ela.
Sete anos durou a peste. Ao final, um dia Justina
rezou fervorosamente por seus perseguidores e obteve do Senhor a graça de que a
epidemia terminasse. Porém não terminou a obstinação de Satanás, o qual,
irritado ao comprovar que não avançava nem um só passo no que se havia
proposto, elaborou um novo plano: foi até Cipriano e com manifesta jactância
lhe assegurou que logo teria ante ele a donzela rendida de amor. Depois disto,
tanto para manchar o bom nome de Justina quanto para enganar ao libidinoso
enamorado, assumiu a aparência da jovem e, disfarçado de modo que parecia ser
exatamente ela, apareceu na casa de Cipriano e qual sem languidez de paixão
arrojou-se em seus braços e deu-lhe a tender que queria beijá-lo. Cipriano,
acreditando que era efetivamente sua amada quem lhe abraçava tão ternamente,
louco de alegria exclamou:
- Oh,
Justina, a mais formosa das mulheres! Bem-vinda sejas a esta casa!
Porém, tão logo Cipriano pronunciou a palavra
"Justina", o diabo, incapaz de resistir à virtude que emanava da mera
articulação daquele nome, repentinamente perdeu a aparência que havia assumido
e desapareceu, deixando em seu lugar uma espessa nuvem de fumo. Com isto
Cipriano caiu na conta de que havia sido objeto de uma burla enganosa por parte
de Satanás; sua alegria se converteu em tristeza e caiu num estado de profunda
melancolia; porém a melancolia por sua
vez reavivou ainda mais as chamas do amor que sentia por Justina, e, para ver
se podia lograr seus desejos de desfrutar de sua amada, decidiu vigiar
constantemente a casa em que ela vivia; e como era exímio em feitiçaria,
recorrendo a suas artes mágicas conseguiu adotar diferentes aparências, umas
vezes de mulher, outras de ave, e sob estas e outras formas permaneceu perto da
jovem, constantemente, porém a certa distância, porque, tão logo tentava se
aproximar suas artimanhas falhavam e recobrava seu verdadeiro aspecto de
Cipriano.
Acladio, seu amigo, se uniu a ele nestas tarefas de
vigilância permanente; com tal efeito, mediante artes diabólicas, se converteu
em pássaro e andava continuamente sobrevoando em volta da casa da virtuosa
jovem. Em certa ocasião, o falso pássaro pousou na janela da casa de Justina.
No entanto, tão logo ela olhou para o pássaro, este perdeu sua forma de ave e
voltou à de Acladio, o qual, ao ver-se em seu verdadeiro ser, começou a tremer
de medo e de angústia porque não podia fugir dali voando, nem sem perigo de
cair ao solo e morrer.
Justina, ao notar a comprometida situação
Satanás, no final, convenceu-se de que jamais
conseguiria o que se propunha e de que quanto tentasse neste sentido estava
condenado ao fracasso; por isso, confuso e envergonhado, se apresentou na casa
de Cipriano. Este, logo ao vê-lo, lhe dirigiu a palavra:
- Olhando o semblante que trazes acredito adivinhar
que te dás por vencido. Tu e todos os de tua corja sois uns desgraçados. A que
vem tanto alardear de força se logo resulta que não podeis nada contra uma
menina que inclusive os vence com suma facilidade e os deixa miseravelmente
humilhados? De todos os modos quero que
me digas uma coisa: de onde tira esta jovem a enorme fortaleza que demonstra
ter?
O demônio lhe respondeu:
- Se me juras que nunca nem por nada te apartarás
de mim, responderei a tua pergunta e te descobrirei de onde provêm sua valentia
e as vitórias que sobre nós tem conseguido.
- Por quem ou por quais coisas queres que eu te
jure? - diz Cipriano.
- Por meus poderes. Jura por meus poderes que
jamais te separarás de mim.
- Por teus extraordinários poderes prometo com
juramento que nunca me separarei de ti.
Então o diabo, fiando na promessa que seu aliado
acabava de fazer, diz:
- Esta jovem, quando me apresentei perante ela, fez
o sinal da Cruz, e, tão logo traçou sobre seu corpo esse sinal, eu fiquei sem
forças, como se estivesse acorrentado, e naquele mesmo momento me derreti como
se derrete a cera diante do fogo.
- Significa isso acaso que o Crucificado é mais
poderoso que tu?
- Por suposto que sim. Ele é o maior que existe no
universo; tão grande e poderoso que em virtude de seu infinito poder nos mantém
aos demônios em estado de perpétua condenação e lança ao fogo eterno que nós
padecemos a quantos conseguimos enganar com nossas trapaças.
- Do que acabas de dizer se segue que, se eu não
quero incorrer nesses horríveis tormentos, devo fazer-me amigo do Crucificado.
- Não esqueças que há pouco juraste que por meus
extraordinários poderes jamais te separarás de mim, e não esqueças que uma
coisa assim não se jura em vão.
- Sabes o que te digo? Que me rio desse juramento e
me rio de ti, e me rio de teus poderes, porque esses poderes que tu chamas
extraordinários, não são mais que fumo. Escuta o que segue: renuncio a ti, e
renuncio a todos os diabos, teus companheiros, e em prova disto agora mesmo vou
fazer eu também sobre meu corpo o sinal da Cruz.
Em seguida, Cipriano persignou-se e, enquanto o
fazia, Satanás, confuso e aterrado, fugiu precipitadamente.
Depois disto Cipriano foi ver o bispo. Este, ao
vê-lo entrar, pensou que vinha seduzir com suas artes mágicas aos cristãos e,
antes que o visitante pronunciasse uma só palavra, disse:
- Cipriano, contenta-te em enganar aos infiéis e
deixa em paz aos nossos. Ademais, advirto-te que quanto trates de fazer contra
a Igreja de Deus será completamente inútil, porque o poder de Cristo é
invencível.
- Por suposto que o poder de Cristo é invencível;
disso tenho provas.
Dizendo isto contou ao bispo tudo o que acabara de
lhe ocorrer. Terminada sua narração pediu o batismo. E a partir de sua
conversão fez tais progressos nas virtudes e ciências que, anos depois,
tornou-se também bispo. Nos primeiros dias de seu episcopado instalou a virgem
Justina num mosteiro com várias outras donzelas, nomeando-a abadessa da
comunidade.
São Cipriano abjurou a bruxaria e tornou-se não só
um grande animador dos mártires, mas um deles, pois morreu decapitado em defesa
da Fé. [1]
(Extraído da obra “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE” –
págs. 203/208 – de minha autoria, ainda inédita em forma de livro).
Nenhum comentário:
Postar um comentário