A seguir, seguem vários
casos de castigos contra a luxúria, iniciando com o relato de Santo Afonso
Maria de Ligório:
A história do bispo Udo
“Trazem este caso os seguintes autores em suas obras: Trithemio, Nauclero, Bautista, Fulgosio, Canesio no seu Marial, Alosa no Céu Estrelado, João Maior no Espelho de Exemplos, Aringo no "Mortes peccatorum pessimae", e outros muitos, e sucedeu pelos anos do Senhor de 985, imperando Otão III, na forma que agora diremos.
Caso admirável e horrendíssimo acerca da castidade
Na cidade de Magdeburgo, que é Metropolitana no
Ducado da Saxônia, cursava as escolas um estudante por nome Udo, de tão curta
capacidade para as letras, a que suposto aplicava da sua parte o trabalho e
diligência, não tirava daqui mais fruto que mofa e zombaria dos condiscípulos,
enfado dos mestres e aflição do próprio espírito. Um dia que esta o perturbou
mais, entrou na Sé daquela cidade, que é dedicada a Deus em honra do ínclito
capitão São Maurício Mártir, e de toda a
sua Legião Tebana, e ali prostrado em oração fervente, rogou à Virgem Senhora
Nossa, e ao mesmo São Maurício, lhe alcançassem de Deus luz no entendimento
para os estudos. Adormeceu, e ali em sonhos lhe apareceu a mesma Senhora e lhe
disse: Ouvi tua oração, e não só te concedo meu bendito filho o talento das
letras, senão que por elas subirás a ser bispo desta igreja por morte do que
agora governa. Se acudires fielmente às
obrigações deste ofício, será grande o teu prêmio; porém se fores negligente,
será grande o teu castigo.
Desapareceu a visão; acordou Udo, e desde aquela hora não achou dificuldade em coisa alguma que estudasse. Foi o dia seguinte à escola, e começou a dar tão boa conta de si, que seus condiscípulos admirados diziam: Não é este Udo, de quem há pouco ríamos? Como tão brevemente se fez tão excelente filósofo? Na mesma admiração está o mestre, ponderando a capacidade rara com que compreendia as matérias, a agudeza com que penetrava as dificuldades, a destreza, a facilidade com que as soltava, e a retentiva com que tudo o que lia e ouvia lhe ficava como gravado na memória. Finalmente, ganhou nome tão famoso em poucos anos, que vagando aquele arcebispado foi eleito nele por comum aplauso do povo.
Udo usa do cargo para saciar o apetite da luxúria
Colocado, pois na cadeira arcebispal, procedeu
louvavelmente aos princípios. Porém como os ofícios grandes costumam os
procedimentos da pessoa que não está fundada em sólidas virtudes, foi pouco a
pouco esquecendo-se de suas obrigações, e entregando-se a vícios de tal sorte,
que mais parecia lobo que entrava no aprisco a degolar o rebanho de Cristo do
que pastor para o apascentar e defender. Deu-se particularmente ao vício da
sensualidade, tão sem freio do temor de Deus e do escândalo do povo, que não
havia mulher casada nem donzela segura de sua insaciável torpeza. E como era
rico e poderoso, e com muitos dependentes da sua mão, ninguém se atrevia a
impedi-lo nem a repreendê-lo. Fez com isto mais profundo o seu pecado: e
desmandou-se a solicitar religiosas; e tirou de um mosteiro a abadessa, com a
qual publicamente vivia amancebado. Quem esperava tal desatino de um homem
letrado, tal desenvoltura de um prelado eclesiástico, tal ingratidão de um
sujeito tão obrigado à Virgem? Porém o vício da carne cega muito a luz do
espírito: também Salomão era sábio; também como devedor do benefício da
sabedoria devia honrar e servir a Deus que lha concedera.
Quis o Senhor piedosíssimo justificar mais a sua
causa, antes que descarregasse o golpe: e assim lhe fez três como admoestações
canônicas. Estando Udo uma noite com aquela concubina à ilharga, ouviu uma voz
que dizia: Cessa de tudo, quia lusisti satis Udo; cessa teu poder Udo,
porque tens julgado muito. Fez o miserável pouco caso disto: e ficou jazendo no
seu pecado. Na noite seguinte teve na mesma forma o mesmo aviso, e também o
desprezou; porque o demônio que estava muito encastelado na sua alma com posse
pacífica, logo lhe divertiu o pensamento; e com fazer-lhe repetir o pecado, se
iam obscurecendo mais as suas trevas interiores. Começou a temer e a ansiar-se; porém brevemente
se tornou a aquietar na falsa paz de sua cauterizada consciência. Converteu,
pois Deus a sua justiça em Juízo: e dirigiu este na forma seguinte:
Um cônego daquela Sé, varão de muita oração e virtudes (que sem aquela mal poderia ter estas) ficou na igreja uma noite depois de Matinas, encomendando a Deus Nosso Senhor este negócio; e Lhe pediu com vivas lágrimas e gemidos que, ou Sua Majestade abrandasse o empedernido coração de Udo, ou quando ele não se quisesse converter, lhe tirasse a vida e o castigasse para cessarem os escândalos, que cada dia eram maiores. Neste tempo entrou na igreja um grande pé de vento que apagou todas as lâmpadas. Temeu o cônego e se lhe arrepiaram os cabelos; mas voltando-se para Deus, e pedindo-Lhe ânimo, se recobrou e viu este admirável espetáculo.
Preparativos solenes para o julgamento de Udo
Entraram na igreja emparelhados dois mancebos de
estremada galhardia, com tochas acesas nas mãos, de claridade superior à que
costuma haver na terra; e fazendo profunda reverência ao Altar-Mor, se puseram
em pé, um a um lado e outro a outro. Entraram logo outros quatro: dois deles
com alcatifas preciosíssimas, que estenderam no pavimento da capela, e dois com
cadeiras de ouro, que colocaram em cima uma ao lado da outra. Vieram depois
doze veneráveis personagens, de tão respeitoso aspecto que cada qual parecia
imperador do mundo; porém no meio deles vinha outro Senhor incomparavelmente
mais majestoso, com coroa de ouro na cabeça e cetro na mão: era Cristo Salvador
Nosso e aqueles seus sagrados Apóstolos; os quais dividindo-se a uma e outra parte Lhe fizeram
suma reverência: e o Senhor se assentou em uma das cadeiras. Entrou logo a
Rainha do Céu, Maria Santíssima, Senhora Nossa, com numerosa comitiva de
virgens e mártires, e feita a reverência ao Senhor tomou a outra cadeira.
O cônego, lá desde o seu cantinho, estava embebido
em admirações, mas desperto, esperando que ação se representaria digna de tão
aparatoso teatro. Quando se vê entra São Maurício, patrão daquele templo com
toda a triunfante legião dos mártires, seus companheiros (que dizem foram
6.666) todos coroados de luz e ornados de decoro e majestade e, feita a
adoração ao Rei, e outra à Rainha das Alturas, se dispuseram por todo aquele
âmbito em bem organizadas fileiras. Eis
que entra outro formosíssimo mancebo de galharda estatura, armado de ponto em
branco com espada nua na mão, como pintam a Justiça, e depois de feita a
semelhante adoração com os joelhos em
terra, se pôs no meio e levantando a voz lançou este pregão:
"Todos os santos cujas relíquias aqui se conservam, levantai-vos e vinde a este juízo".
Julgamento na presença da corte celeste: a sentença
do Juiz
Imediatamente apareceu ali uma grande multidão de
santos, mártires e virgens, confessores e doutores, que postos também por sua
ordem enobreceram mais aquele ilustríssimo conclave.
Saiu então o capitão São Maurício, dando-se por
autor daquela causa; e proclamou
dizendo:
- Retíssimo Juiz, tempo é de que vossa soberana
Majestade faça justiça.
Mandou então o Senhor que Lhe trouxessem ali a Udo;
voaram logo uns anjos e tirando-o da ilharga da concubina, com quem estava
abraçado, o puseram na presença de Cristo, no meio de todo aquele concurso, com
tal confusão do miserável que não é possível explicar-se. E São Maurício começou a por-lhe os cargos,
dizendo:
- Este, Soberano Senhor, é aquele Udo, a quem vossa
Mãe Santíssima, que presente está, fez tão particulares benefícios; a quem por
Sua intercessão destes o talento da sabedoria; a quem encomendastes o cuidado
desta igreja; e ele em vez de apascentar as vossas ovelhas, as tem empestado
com o contágio de seus vícios, gastando neles o patrimônio da mesma igreja.
Este é o que teve o atrevimento de violar as Vossas esposas consagradas e de
persistir na sua maldade contra o seu próprio voto, contra o seu ofício, contra
as suas leis humanas e divinas, contra os remorsos da sua consciência, e contra
um e outro avisos do Céu que lhe enviou Vossa paciência e piedade.
Ouvia o Supremo Juiz os graves artigos daquele
processo; e voltando o rosto para aqueles santos que Lhe assistiam, disse:
- Como vos parece que nos portemos com este homem?
Aqui, levantando a voz o mancebo da espada nua,
disse em nome de todos aqueles assessores:
- Digno é de morte!
E o Senhor pronunciou a sentença nesta forma:
- Execute-se; e pois não soube ser cabeça da Igreja,
que lhe encomendaram, cortem-lhe a cabeça!
No mesmo ponto aproximou-se o mancebo e mandou a
Udo que lhe inclinasse a cabeça para o degolar. Levantada a espada, vai
descarregar o golpe quando um dos quatro anjos acode dizendo:
- Detém-te, que esse homem mau celebrou ontem e
comungou em pecado mortal, e por vontade de Deus se conservam ainda em seu
corpo as espécies sacramentais: é necessário tirarmos com decência a Hóstia
Consagrada.
Em seguida, levantou-se da cadeira a Virgem Santíssima, Senhora Nossa, e acompanhada de anjos e santos chegou com um cálice de ouro na mão, no qual outro anjo, dando nas costas de Udo uma pancada, lhe fez lançar fora a Sagrada forma. E a Senhora purificou com sua mão, colocando o cálice sobre a pedra de Ara com toda a decência e acompanhamento de anjos e santos. Isto feito, o valoroso mancebo descarregou o golpe e destroncou aquele miserável corpo, saltando a cabeça para a outra parte e ficando as lajes daquele lugar manchadas com seu torpe sangue. Executada a sentença, desapareceu toda aquela nobre companhia, deixando o templo às escuras como estava antes.
Como os demônios levaram a alma de Udo
Atônito aquele virtuoso sacerdote com a
representação de caso tão estupendo, não sabia o que fizesse nem em que se
determinasse; e dizia para si: Que é
isto que vi? Sonho meu, ou ilusão do demônio, ou revelação de Deus? Sonho não o parece, que sempre estive
desperto, e fiz disto mesmo atos reflexos; mas quero certificar-me se está aqui
o corpo do desventurado arcebispo. Animou-se, pois e foi buscar luz (por
ventura a sua casa ou a alguma capela mais retirada no claustro, onde houvesse
lâmpada), acendeu as da igreja, chegou ao lugar onde vira o suplício, e, com
efeito, viu o corpo destroncado e a cabeça lançada à outra parte, e as pedras
banhadas no sangue fresco; subiu ao altar e viu nele o cálice de ouro com a
Forma consagrada dentro. Não foi logo sonho (disse então novamente admirado),
mas demonstração pública da divina justiça, pois a ofensa também era pública. E
fechadas as portas da igreja foi, antes que amanhecesse, notificar aos
capitulares e outras pessoas principais do povo todo o sucedido. Divulgou-se o
caso: abriram-se as portas da igreja, entrou inumerável gente, e todos foram
testemunhas daquele tão raro como formidável espetáculo; e louvaram os juízos
de Deus, que sendo umas vezes ocultos e outras manifestos sempre são retos e
justificados por si mesmos.
Até aqui revelara Deus Nosso Senhor a condenação de
Udo quanto à morte temporal: segue-se outro caso em que revelou a outro
sacerdote a sua condenação quanto à morte eterna. Era este capelão do mesmo
arcebispo nos tratos de sua torpeza, e ele o havia mandado fora da cidade a
negócios de importância; e se vinha neste mesmo tempo recolhendo, mandadas já
adiante as cargas. Vindo, pois caminhando por um escampado, o carregou um sono
tão pesado que não podendo resistir-lhe desmontou, e atando as rédeas do cavalo
ao braço se lançou a dormir ao pé de uma árvore. Apenas adormecido, viu em
sonhos uma numerosa tropa de demônios fazendo grande ruído, armados todos de
diversas amas com lanças, piques e alabardas nas mãos e que faziam alto naquele
campo. Vinha entre eles um que no agigantado da estatura, no disforme do
aspecto, e no soberbo das ações mostrava ser o Príncipe das trevas. Levantaram-lhe
logo ali um tribunal, em que tomou assento e todos lhe fizeram reverência.
Assomou neste tempo por outra parte outra caterva de demônios, que vinham dando
descompostas risadas e fazendo grande algazarra, porque traziam alguma rica
presa ou despojo com que se mostravam contentes. Era esta a miserável alma de
Udo em figura corporal, para que pudesse ser vista por semelhantes espécies.
Vinha amarrada com cadeias de fogo e sobre todo encarecimento feia, triste e
desconsolada; e quando já chegava perto do Príncipe Demonarca, alguns daqueles
infernais ministros correram diante, mais ligeiros que abutres a dar-lhe a nova
e diziam: Praça, praça, que vem uma pessoa principal; façam lugar que vem um
sujeito muito benemérito do nosso reino.
Chegando o miserável Udo, pôs nele Lúcifer os
afogueados olhos e lhe disse mofando:
- Seja vossa senhoria muito bem vindo; que tem sido
a sua vinda aqui muito suspirada em meu palácio e corte; e desejamos todos
pagar-lhe tantos e tão assinalados serviços com que tem aumentado a nossa
coroa; olá, vassalos meus, é motivo que regalemos o novo hóspede, dai-lhe
alguma coisa que coma.
Chegaram logo uns demônios com pratos negros e
asquerosos, cheios de sapos, víboras e serpentes vivas; e abrindo-lhe a boca o
obrigaram a comer. Entraram outros com grandes vasos de fel de dragões e
enxofre derretido, e o obrigaram e beber, esgotando até as fezes. Disse, então,
Lúcifer
- Agora que sua senhoria comeu e bebeu, é bom que
goze também da suavidade de nossos banhos.
Dito e feito: afastou um demônio uma grande laje
que servia de tampa a um poço que existia ali perto, do qual rebentaram tantas
e tão impetuosas labaredas, que pareciam querer escalar o céu, e desafogando-se
por aquele campo, tornaram em cinzas não só as árvores, mas as mesmas pedras, e
até uma fonte que por ali corria a deixaram seca sem gota. Agarraram logo
outros daqueles desventurados e o embocaram pelo poço adentro; onde, havendo
estado longo tempo, o tiraram da cor de um ferro que esteve na fornalha feito
brasa viva, e o tornaram à presença de Lúcifer, que escarnecendo lhe disse:
- Que lhe parece a vossa senhoria dos nossos
banhos? Não são suaves e regalados? Pois isto não é mais que uma prova, ou
ensaio, da grande praga que temos preparado para os assinalados serviços e
merecimentos de vossa senhoria.
A tudo isto tinha estado em silêncio o desventurado
Udo; e vendo-se já condenado a uma duração interminável de tormentos e que se
seus olhos se ausentara para nunca mais
tornar a esperança de remédio, levantou a temerosa voz e com prolixos e
altíssimos gemidos dizia:
- Ai de mim! Ai de mim, desgraçado! Oh, que caros
me custaram meus deleites! Oh, que breves foram, e momentâneos, sendo a pena
deles eterna! Maldito seja o dia em que fui gerado, maldita a hora em que nasci
no mundo; malditos os pais que me deram o ser; malditos todos os que me
ajudaram a pecar; maldito... (aqui começou a blasfemar de Deus e da Virgem e de
todos os Santos).
E os demônios, ouvindo-o se fecharam em risadas e
diziam:
- Oh que bem sabe já o nosso ofício! Que lindamente
canta! Necessário é que fique em nossa
casa e cante no nosso coro. Pois levai-o logo - disse Lúcifer - e dai-lhe com
unhas e dentes.
Se sumiram pela boca do poço, com ruidoso estrondo,
que parecia virem abaixo as abóbadas do
firmamento e que os montes se arrancavam de seus assentos.
Todavia o demonarca com outros espíritos malignos,
que lhe faziam corte, puseram os olhos espantosos e terríveis, que pareciam
carvões acesos, no clérigo que estava dormindo:
- Aquele que ali está dormindo não é o capelão de
Udo e seu alcoviteiro? Razão é que o acompanhe nas penas, pois lhe ministrou
nas culpas. Trazei-o aqui logo!
Correram a ele os demônios para o agarrar. E neste passo o clérigo com a força do susto acordou daquele formidável sonho. E como se levantou se estrebuchando e espavorido, espantou-se o cavalo que estava atado a seu braço e quebrou a cana dele. Porém como Deus queria dar-lhe lugar de penitência e que fosse testemunha do que vira, parou enfim o bruto e se amansou de sorte que o clérigo pôde outra vez montar, ainda que com grande dor e trabalho. Chegando à cidade viu que em nenhuma coisa se falava mais que na infeliz e repentina morte de seu amo; e conferindo o que tinha passado no castigo do corpo com o que vira no da alma, ficou a verdade de uma e outra visão mais confirmada.
A ira divina manifesta-se até no cadáver
Porém como as obras de Deus em qualquer gênero são
perfeitas, faltava ainda alguma demonstração da ira divina acerca daquele
miserável cadáver que na igreja ficara degolado. Esta foi que não quiseram os
da cidade dar-lhe sepultura
Dura a memória deste espantoso caso naquela
Província até o presente dia; e ainda que os saxônios o quisessem negar, as
mesmas pedras o publicam, porque em uma dita da igreja se mostra claramente o
sangue daquele justiçado, cuja nódoa não pôde apagar-se por estar incorporada
com a mesma pedra, que parece embebeu
Até aqui a relação do caso. No qual se ofereciam
muitas coisas dignas de ponderação: o perigo das letras, quando se não
acompanham de virtudes; o fácil abuso das riquezas e dignidade para a
depravação dos costumes; a gravidade do escândalo; a dureza do coração humano
resistindo às vozes divinas e despencando-se de um pecado em outro mais
profundo; a eficácia da oração dos
justos em ordem ao bem público e à honra
divina; o desamparo de uma alma tanto que a Virgem Senhora Nossa fica em silêncio
e não advoga por ela; o execrando sacrilégio dos que comungam em pecado mortal
e o respeito que se deve ao Augustíssimo Sacramento do Altar; a justificação
exatíssima, a vasta profundeza dos divinos juízos; a honra, a fama dos
pecadores trocados subitamente em infâmia e ignomínia; a ingratidão como é caráter próprio de almas
réprobas; o ofender a Deus por servir aos ímpios, como é arriscado a fazer-lhes
companhia nas penas eternas; as criaturas todas como perseguiriam ao pecador se
Deus lhes desse licença; e outros muitos doutrinais avisos que desta história
se provam manifestamente. Porém como o nosso intento nesta obra não tem esfera
tão ampla, só pretendo agora que tiremos com tempo o desengano que aquela alma
ponderou já tarde demais. Oh, deleites da
carne (dizia ela abrindo na pena os olhos que fechara na culpa) como custais
caro! Que brevemente passastes e como vosso tormento não passará eternamente!
Consideremos atentamente como não indo entre o pecador e o inferno mais que o
fio de sua vida, que pode quebrar em qualquer instante, não pode haver loucura
mais desatinada do que deixar-se o
pecador viver no estado em que não quisera morrer; e por um gosto torpe e
momentâneo vender a salvação eterna da sua alma.
E, finalmente, tornando à conclusão do presente
capítulo, digo que são tantas no mundo as desgraças, ruínas, sedições,
crueldades e sucessos trágicos que este só vício da carne tem causado, que
apenas há pessoas das que tem anos de discrição e experiência que não possa
referir vários exemplos. Nestes, pois deve carrear com a consideração quem
deseja tirar escarmento e pedir a Deus lhe conceda seu santo temor de Deus,
para conter-se nos limites que assinala Sua Lei”. [1]
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