segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

UM "FIAT" QUE ECOOU NA HISTÓRIA



 (COMENTÁRIOS DE DR. PLINIO SOBRE A SANTÍSSIMA  VIRGEM MARIA - 20)


No linguajar comum do homem hodierno, certos conceitos como os de esplendor, de pompa e glória, tendem a se confundir com a idéia de riqueza e a reduzir-se, em última análise, a uma questão econômica.
Ora, a Anunciação ocorreu numa casa pobre, mas foi um episódio esplendoroso, pois nele deu-se a conhecer o nascimento milagroso de um Menino, o qual reinaria no trono de David e teria o império sobre toda a Terra nos séculos futuros.

As cogitações de Nossa Senhora sobre o mistério que Lhe era anunciado

As interrogações de Nossa Senhora – “Se Eu não conheço varão, como dar-se-á isso?” – nos leva ao seguinte pensamento: ou Ela havia recebido de Deus a revelação de que seria sempre virgem, ou, pelo menos, sentira profundamente na alma o convite para a virgindade perpétua e não restava a menor dúvida de que este chamado vinha de Deus.
Estava implícito em suas palavras esta reflexão: “Sei que para conciliar essas atitudes aparentemente contraditórias de Deus – que me inspira a virgindade, porém me quer como mãe do Salvador -, acontecerá uma maravilha, porque Ele nunca se contradiz”.
O Evangelho narra que Ela cogitava sobre o que seria essa saudação.
Maria não colocava em dúvida que aquele Anjo viesse realmente da parte de Deus, pois o tratou como um emissário do Altíssimo. Mas a cogitação d’Ela incidia sobre o mistério incidente na saudação: como explicar que seu Filho pudesse ter todo aquele poder que Lhe era anunciado?
Como descendente de David, Nossa Senhora sabia que o Filho d’Ela nascido também o seria. Tinha ciência e que São José, seu esposo, era da mesma estirpe real, e que, embora o Menino não nascesse dele, seria descendente do Rei-Profeta segundo a lei.
Há uma bonita expressão usada pelos teólogos: “Caro Christi, caro Mariae” – a carne de Cristo é a carne de Maria. Ou seja, d’Ela Jesus herdou a carne e o sangue do grande monarca de Israel.
Ao se ler a narração evangélica, fica-se com a forte impressão de que Nossa Senhora cogitava notadamente sobre o significado das palavras “lhe dará o trono de David”, e sobre a natureza do reino que seria outorgado a seu Filho. Daí a sua interrogação: tratava-se do nascimento do Messias, cuja vinda Ela tanto ansiava?
A resposta do Anjo começa por dizer: “Não temas, ó Maria!”
Ela tinha, portanto, um certo temor.
Como se explica que, concebida sem pecado original, e isenta de qualquer imperfeição moral, Ela pudesse ter medo de um Anjo?
A presença de um espírito angélico, e sobretudo de um Arcanjo, é algo de tal densidade que deixa perplexo o ser humano. Era natural que Maria sentisse todo o peso da presença do mensageiro celeste. Porém, não foi o Anjo que Lhe causou temor, mas a comunicação da impressionante missão que a Ela cabia, pois na sua humildade teve receio de não corresponder de modo perfeito aos sublimes desígnios de Deus.
Mas a explicação do Anjo: “Tu encontraste graça diante de Deus”, inundou-A de tranqüilidade e paz.
Os exegetas afirmam que no momento em que Ela proferiu o “Ecce ancilla Domini”, o Espírito Santo concebeu Nosso Senhor no claustro imaculado da Santíssima Virgem.
Assim, daquele diálogo, tão simples mas tão belo, teve como esplendorosa conseqüência a Encarnação do Verbo.

A vida e as cogitações de Nossa Senhora em Nazaré

Nossa Senhora guardou as promessas do Anjo no interior de sua alma, e ao ver o Menino Jesus, segundo expressão do próprio Evangelho, crescer em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens, naturalmente pensava na missão que Lhe estava reservada.
Sabendo que seu Filho era Deus, Nossa Senhora julgava explicável que Ele obtivesse os êxitos mais retumbantes e extraordinários. E terá Ela pensado, ao ver Jesus se tornar moço, que em certo momento Ela sairia de casa paterna para dar cumprimento à sua missão?
Porém, essa hora ainda demoraria a chegar. Durante trinta anos, Ele quis viver  apenas com Ela e São José. Ao que tudo indica, o chefe da Sagrada Família faleceu antes de Nosso Senhor começar sua vida pública. A tradição nos atesta que Nossa Senhora e Jesus  estavam presentes à cabeceira de São José no momento de ele exalar seu derradeiro suspiro: razão pelo qual, o grande Patriarca é também o padroeiro da boa morte.
Como gostaríamos de assistir essa cena! Um leito pobre, Nossa Senhora de um lado, e de outro, Nosso Senhor, atraindo para Si a atenção de Maria e a do moribundo, aos quais dirigia sublimes palavras de conforto. Nossa Senhora, com sua insondável solicitude, servia a São José, orando por ele e também o consolando... Que revoada de Anjos!
Em certo momento, as sombras da morte se tornam mais próximas. São José começa a notar que aquele convívio, para ele até certo ponto um Céu, iria cessar. Mas, de outro lado, sabia que lhe aguardava uma gratíssima missão: chegando ao Limbo dos Patriarcas, anunciaria que o Messias se tinha encarnado no seio da Virgem Maria. Provavelmente, só com a menção dos nomes de Jesus e de Maria aquele lugar inteiro se teria iluminado...
Após a morte de São José, Nossa Senhora terá pensado a respeito de Jesus:
“Quando começará Ele sua vida pública, e cessará nosso convívio? Com quem ficarei? Que notícias terei d’Ele? Quando terá início o seu Reino? Assistirei a implantação dele, estando ainda na Terra ou já no Céu?
“Inúmeras vezes, conversando com Ele, notei que sua fisionomia foi se tornando mais tristonha. E na medida em que a tristeza pode ser comparada a uma sombra, foi se tornando sombria. Ele me tem falado de um imenso sacrifício que deve padecer. Sei que é a morte de Cruz, à qual se referem as Escrituras, e que Ele mesmo já me anunciou. Vejo-me, de um lado, cercada de esplendor, e de outro, da perspectiva do fracasso tenebroso”.
Passam-se os dias, os meses e os anos... Trinta anos viveu Jesus sob o mesmo teto com Ela, adornando sua alma com maravilhas cada vez maiores.
Um dia – pode-se conjeturar -  Ele se aproxima d’Ela e, com veneração e carinho ainda mais intensos, envolvendo-A com o olhar, Lhe diz: “Minha Mãe, chegou o momento!”
Talvez tivesse dito isso com um sorriso cheio de saudades, mas saudades antecipadas, cheias de sorriso. Era a missão d’Ele que ia começar e desfecharia na sua glória.
Ele sabia que, essencialmente, caminharia em direção à Cruz. Mas nesse percurso recrutaria os Apóstolos, os discípulos e todos os elementos da Igreja nascente. Pregaria durante três anos sua maravilhosa doutrina, praticaria milagres que haveriam de impressionar e persuadir o mundo inteiro, fundaria a Igreja, instituiria os Sacramentos. E depois morreria...
O que Mãe e Filho se terão dito nessa despedida? Terá sido uma surpresa que durou um minuto? Ou Ele A avisou com um mês de antecedência?
Nessa hipótese, para Nossa Senhora esse mês terá parecido um minuto, porque Ela quisera uma despedida muito mais prolongada?
São maravilhas que nos serão reveladas no Céu, e  diante das quais não temos palavras para manifestar nossa veneração e adoração.
Após Nosso Senhor ter iniciado a vida pública, Nossa Senhora é procurada pelas santas mulheres e se incorpora a essa família de almas cujos cuidados Jesus Lhe confia.



“Conversas” de Nossa Senhora com o Espírito Santo

Todas essas considerações nos parecem de extrema beleza.  Porém, como são restritas diante de realidades ainda mais altas!
Sabemos, por exemplo, que Nossa Senhora é a Esposa do Divino Espírito Santo. Quantas graças a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade Lhe concedia, para que conhecesse e meditasse em tudo quanto acontecia?
Quantas perguntas não terá feito ao Divino Consorte, dirigindo-se a Ele com as palavras: “Meu Rei, meu Senhor e meu Esposo?”
Se o relacionamento d’Ela com seu marido segundo a lei, São José, era tão bonito e tocante, como não terá sido com o Divino Espírito Santo?
Por exemplo, no momento da Encarnação, Ele se tornou Esposo d’Ela. Ora, no ato dos desponsórios, o homem oferece à sua mulher um presente magnífico. Que dádiva extraordinária o Divino Espírito Santo terá concedido a Maria? Que graças? Que esplendores? Tal escapa à nossa pobre imaginação...

Esperanças e apreensões de Nossa Senhora

Durante a vida pública, ao contemplar as pregações e milagres de Nosso Senhor, parecia a Nossa Senhora que a promessa da glória estava se realizando. Mas, de outro lado, com seu discernimento dos espíritos incomparável, Maria Santíssima percebia que Satanás rondava pelo ambiente, e sentia o ódio que ele incutia em algumas almas.
Pensemos noutra circunstância. Como diz São Tomás de Aquino em seu belíssimo hino eucarístico Lauda Sum: In suprema nocte cenae, na última noite da ceia, véspera da Paixão, recumbens cum fratribus, estando sentado com os irmãos, que são os Apóstolos, Nosso Senhor celebrou a primeira Missa.
Provavelmente, Nossa Senhora se encontrava no Cenáculo, e recebeu também a Comunhão. Que maravilha não terá sido a Primeira Comunhão de Nossa Senhora! Mas, Ela ouviu igualmente a terrível profecia: “Um de vós há de Me trair”. Viu Judas sair de modo apressado do Cenáculo, com essa intenção.  O Evangelho narra a cena de modo tocante, com palavras que têm um caráter muito simbólico: “Fora, era noite...”
Ela viu Nosso Senhor sair em seguida. Talvez Ele tenha se despedido d’Ela. Ter-Lhe-á dito que era chegada sua hora, ou A deixou na dúvida?
Ele e os discípulos se retiraram depois de terem cantado um hino pascal, e penetraram naquela mesma noite, na qual ecoavam os passos de Judas.
O que terá acontecido com Nossa Senhora nos instantes seguintes?
Provavelmente, o fundo de quadro da meditação d’Ela eram as promessas de triunfo recebidas na Anunciação.
Porém, havia o preço da glória, não mencionado pelo Arcanjo naquele jubiloso encontro, e esse preço era a dor.
Pensemos, então, na Virgem Dolorosa, na hora mais terrível da Paixão, no meu entender o momento em que Nosso Senhor exclamou em altos brados: “Meu Pai, Meu Pai, por que Me abandonastes?”
É um brado de sofrimento e de dilaceração, mas são também as palavras iniciais de um Salmo cujo triunfante tom final parece prenunciar a Ressurreição.
Que sentimentos terão ido na alma santíssima de Maria, ao ouvir esse clamor de Jesus?
Por outra parte, Ela vislumbrou, antes da morte d’Ele, o primeiro clarão de alegria, quando O ouviu dizer ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Essa afirmação significava que Nosso Senhor nunca perdera de vistas, mesmo em meio às dores mais lancinantes, que Ele estava assim abrindo para a humanidade as portas do Céu.

As promessas divinas se realizam em meio a aparentes desmentidos

Das presentes reflexões nos é dado tirar uma conclusão que pode ser resumida em poucas palavras.
Com a Anunciação, foi comunicada a Nossa Senhora, e através d’Ela a todo o gênero humano, a Encarnação do Verbo. Com o seu “Sim!”, o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
No dia da Anunciação, a Palavra de Deus raiou num amanhecer de alma repleto de louçania, com promessas superlativas.
Mas se as promessas de Deus suscitam as mais alegres esperanças, elas soem passar também por aparentes e terríveis desmentidos. É o modo de agir da Providência.
Nesse sentido, a Anunciação foi também a proclamação de que a autêntica glória não consiste em não sofrer humilhações e derrotas, mas, sim, em lutar pela Verdade.
A alma santíssima de Nossa Senhora, habituando-se às promessas, às alegrias e aos desmentidos, constitui para os católicos o sublime exemplo de submissão à vontade de Deus, manifestada por Ela, de modo inigualável, no humilde “Fiat” que ecoou por toda a sua vida.

(Revista “Dr. Plínio”, n. 72, março de 2004)



sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

POR QUE SER TOMISTA?


Publicado 2009/07/03  (Revista Lumen Veritatis)
Author :
Mons. João Clá Dias, EP
Um dos sintomas pelos quais podemos discernir o quanto Deus cria a alma humana com vistas à vida eterna é a inextinguível sede de eternidade que brota de seu mais profundo âmago Mons. João Clá, Dias, EP (1)

O homem tem sede de perpetuar sua lembrança

"Eterna é a fidelidade do Senhor" (Sl 116, 2).

Um dos sintomas pelos quais podemos discernir o quanto Deus cria a alma humana com vistas à vida eterna é a inextinguível sede de eternidade que brota de seu mais profundo âmago. E isso acontece apesar de o homem constatar até que ponto é efêmera sua existência terrena, tal qual diz o Eclesiástico: "A duração da vida humana é quando muito de cem anos. No dia da eternidade esses breves anos serão contados como uma gota de água do mar, como um grão de areia" (Eclo 18, 8).

Entretanto, arde no homem o desejo de prolongar estavelmente sua lembrança junto aos que com ele vivem, como também entre aqueles que no futuro haverão de existir. A angústia muitas vezes pervade o espírito de quem se coloca na perspectiva de vir a ser inteiramente esquecido pelos seus e pela posteridade. A simples consideração deste versículo do Eclesiastes: "Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória junto àqueles que virão depois deles" (1, 11), quase sempre deita uma certa amargura no fundo da alma de quem experimenta a progressiva cercania da morte.

A febricitada busca de sucesso traz mais frustração do que felicidade

Esse é o pânico psíquico que esteve na raiz da febricitada busca de sucesso da parte de tantos infelizes. Eles mais encontraram frustração do que felicidade, e o que é pior, ad perpetuam rei memoriam. Mais ainda, essa memória pela qual ansiavam fixou-se nas esteiras da História bem no extremo oposto à glória divina que desejavam. Os tempos que nos precederam estão coalhados de ilustrações dessa triste situação. Algumas, porém, se tornaram paradigmáticas como é, por exemplo, o caso de Alexandre Magno (356 a.C. - 323 a.C.).
Depois de se ter apoderado da Grécia, Alexandre, filho de Filipe da Macedônia, oriundo da terra de Kitim, derrotou também Dario, rei da Pérsia e da Média, e reinou em seu lugar. Empreendeu inúmeras guerras, apoderou-se de muitas cidades e matou vários reis da terra. Atravessou-a até aos seus confins, apoderou-se das riquezas de vários povos, e a terra rendeu-se-lhe. Tornou-se orgulhoso e o seu coração ensoberbeceu-se. Reuniu poderosos exércitos, submeteu ao seu império muitos povos e os reis pagaram-lhe tributo.

Finalmente, adoeceu e viu que a morte se aproximava. Convocou então os seus oficiais, os nobres da sua corte, que com ele tinham sido criados desde a sua juventude, e, ainda em vida, dividiu o império entre eles. Alexandre reinou doze anos, e morreu. Os seus generais assumiram o poder, cada um na sua região. Depois da sua morte, cingiram o diadema e, depois deles, os seus filhos, durante muitos anos, multiplicando os males sobre a terra" (1 Mc 1, 1-10).

Conta-nos ainda a História (2) , que Alexandre chegou a exigir de seus súditos um culto de idolatria, considerando-se deus. Mas, de que lhe valeram a sucessão de magníficas vitórias, a fundação do Império Grego e o ter-se tornado o dominador absoluto do Oriente Próximo? Em realidade, seu orgulho teve um fim prematuro, vindo a falecer aos trinta e três anos de idade. Seu desaparecimento teve trágicas conseqüências: após longas e sangrentas lutas pela sucessão, seu império fora desmembrado e, com o passar do tempo, absorvido pela expansão romana. Seu legado moral - a civilização helenística - é considerado como deletério pelo livro dos Macabeus. Nele se nos apresenta Antíoco Epífanes - sucessor da dinastia dos selêucidas - como "aquela raiz de pecado" (1 Mc 1, 10) nascida, em última análise, do influxo expansionista de Alexandre Magno (3) .

São Tomás de Aquino: o homem que marcou a posteridade com sua doutrina

Quanto erraram este e tantos outros homens! Pois o caminho para perpetuar a memória é bem outro, tal qual afirma o Salmista: "Eterna será a memória do justo" (Sl 111, 6), ou o próprio Livro da Sabedoria: "Mais vale uma vida sem filhos, mas rica de virtudes: sua memória será imortal, porque será conhecida de Deus e dos homens" (Sb 4, 1). Ainda mais nimbada de glória será a imortalidade de sua memória se de seus lábios ou de sua pluma brotarem sábias e elevadas explicitações segundo os recursos da razão humana, sobre as últimas causas, o mundo, o homem e a própria existência de Deus, como também de Seus atributos. E se esse esforço não se apoiar exclusivamente na inteligência, mas, de maneira especial, nas luzes que nos proporciona a Revelação, o fulgor daí resultante será maior.

Um indiscutível exemplo de quem, nessa linha, marcou os acontecimentos da Igreja e foi aureolado da melhor fama é São Tomás de Aquino. Por um rico sopro do Espírito Santo, soube ele conjugar as verdades filosóficas e teológicas enquanto procedentes da Verdade Criadora e Inteligência Suprema. E isto porque a Filosofia é a mais importante das ciências para servir à Teologia, sendo esta a primeira entre todas elas. Uma estuda a ordem da natureza e a outra, a ordem da graça. Ambas muito harmônicas, pois, delas, um só é o criador: Deus! Ele é o autor da verdade natural, como também da revelada, e daí haver um necessário e perfeito entrelaçamento entre razão e fé.

No coração do Doutor Angélico, a lógica adquire asas sem perder seu contato com a terra, e as ciências físicas, metafísicas e filosóficas com toda humildade, inclinam-se diante da autoridade divina para servir à Teologia. Em sua mente encontramos um alcandorado resumo de toda a ciência da Idade Média, como até mesmo da do mundo antigo, purificada e santificada; ali estavam a Filosofia e a Teologia conduzidas a uma perfeita união, a razão submetida à fé em novo vigor e energia. Por isso não devemos considerar suas obras como simples ensaios de Teologia ou de Filosofia, mas sim um verdadeiro monumento-síntese de enorme envergadura e profundidade, esplendor de uma grande época. Daí tornar-se compreensível ainda hoje o motivo pelo qual se deve buscar em São Tomás uma das mais belas aplicações do método, ou melhor ainda dizendo, a lógica em toda a força de sua clareza e penetração, e nunca com os entraves com que a arrouparam nos séculos posteriores.

Quer na alma dos santos, quer na voz do Magistério da Igreja, sempre houve um reconhecimento do gênio divino com o qual o Doutor Angélico elaborou sua Suma Teológica, discernindo e desenvolvendo todos os ramos do conhecimento humano, agrupando-os, entrelaçando-os e entregando-os ao serviço da fé. É nessa perspectiva que encontramos Santo Alberto Magno abismado diante da Suma Teológica produzida por seu ex-aluno, quando com muito esforço procurava ele fazer avançar a sua própria, que há certo tempo começara.
Quando Alberto leu a Suma de seu antigo aluno, exclamou maravilhado: "Isto é perfeito e definitivo!" E se absteve de continuar a sua. O Concílio de Trento confirmou seu parecer: sobre a mesa da sala, colocou ao lado da Bíblia a Suma de São Tomás, como Testamento da Idade Média (4).

O brilho da fulgurante aura de São Tomás não ficou circunscrito à Idade Média; ainda hoje suas luzes nos assistem com seus raios. Na carta Lumen Ecclesiae, do Servo de Deus Paulo VI, dirigida ao Superior Geral dos Dominicanos por ocasião do VII centenário da morte do grande doutor da Igreja, encontramos este importante elogio:
Também o Concílio Vaticano II recomendou, duas vezes, São Tomás às escolas católicas. Com efeito, ao tratar da formação sacerdotal, afirmou: "Para explicar da forma mais completa possível os mistérios da salvação, aprendam os alunos a aprofundar-se neles e a descobrir sua conexão, por meio da especulação, sob o magistério de São Tomás". O mesmo Concílio Ecumênico, na Declaração sobre a Educação Cristã, exorta as escolas de nível superior a procurar que, "estudando com esmero as novas investigações do progresso contemporâneo, se perceba mais profundamente como a fé e a razão têm a mesma verdade"; e logo em seguida afirma que para esse fim é necessário seguir os passos dos doutores da Igreja, sobretudo de São Tomás. É a primeira vez que um Concílio Ecumênico recomenda um teólogo, e este é São Tomás. Quanto a nós, basta, entre outras coisas, repetir as palavras que pronunciamos noutra ocasião: "Aqueles que têm a missão de ensinar [...] escutem com reverência a voz dos doutores da Igreja, entre os quais ocupa lugar eminente São Tomás; com efeito, é tão poderoso o talento do Doutor Angélico, tão sincero seu amor à verdade e tamanha sua sabedoria ao investigar as mais elevadas verdades, ao explicá-las e relacioná-las com profunda coerência, que sua doutrina é um eficacíssimo instrumento, não só para estabelecer bem os fundamentos da fé, mas também para retirar dela, de modo útil e seguro, frutos de um sadio progresso" (5) .

No novo Código de Direito Canônico - uma das obras de grande envergadura do pontificado do Servo de Deus João Paulo II -, a doutrina teológica de Tomás de Aquino se torna, por assim dizer, "lei" da Igreja. Ao tratar da formação dos clérigos, o Código recomenda:
Cân. 252 § 3. - Haja aulas de Teologia dogmática, fundamentada sempre na palavra de Deus escrita, junto com a sagrada Tradição, pelas quais os alunos aprendam a penetrar de maneira mais profunda os mistérios da salvação, tendo por mestre principalmente São Tomás (6_.

É particularmente significativo o empenho de João Paulo II em ressaltar a atualidade da doutrina tomista. Matéria na qual esse Papa de feliz e saudosa memória tem uma especial autoridade, não só em decorrência de sua formação no "Angelicum" de Roma, como também por ter vivido intensamente os problemas e as contradições do século XX, exercendo sua atividade docente e ministerial num país em que se confrontavam de forma aguda as ideologias que levaram o racionalismo ao extremo do ateísmo, apesar de ali perpetuar-se uma comunidade eclesial pujante e de sólida fé.

Em 13 de setembro de 1980, ao receber os participantes do VIII Congresso Tomista Internacional, por ocasião do centenário da encíclica Aeterni Patris, do seu predecessor Leão XIII, o Papa João Paulo II afirmava:
Os cem anos da encíclica Aeterni Patris não passaram em vão, nem esse célebre Documento do Magistério pontifício perdeu a sua atualidade. A encíclica baseia-se num princípio fundamental, que lhe confere profunda unidade orgânica interior. É o princípio da harmonia entre as verdades da razão e as da fé. Isto é o que tinha sumamente a peito Leão XIII. Tal princípio, sempre a manifestar-se e atual, durante estes cem anos fez notáveis progressos. Basta ter conta na coerência do Magistério da Igreja desde o Papa Leão XIII até Paulo VI e naquilo que maturou no Concílio Vaticano II, especialmente nos documentos Optatam Totius, Gravissimum Educationis e Gaudium et Spes. [...]

Graças às diretrizes da Aeterni Patris, de Leão XIII, que com tal documento - que tinha como subtítulo "De philosophia christiana... ad mentem sancti Thomae... in scholis catholicis instaurandis" - manifestava a consciência de terem chegado uma crise, uma ruptura e um conflito ou, pelo menos, um ofuscamento acerca da relação entre a razão e a fé. No interior da cultura do século XIX poderiam-se, de fato, reconhecer duas atitudes extremas: o racionalismo (a razão sem a fé) e o fideísmo (a fé sem a razão). A cultura cristã movia-se entre esses dois extremos, pendendo para uma parte ou para outra. O Concílio Vaticano I tinha já dito a sua palavra a propósito. Era agora o tempo de imprimir novo curso aos estudos no interior da Igreja. Leão XIII aplicou-se, com clarividência, a essa tarefa, representando - e este é o sentido de instaurare - o pensamento perene da Igreja, na límpida e profunda metodologia do Doutor Angélico (7).

Eixo central do pensamento cristão

Salientou também o Servo de Deus João Paulo II, nessa ocasião, o papel de grande destaque que ocupa o Doutor Angélico, tanto nos céus da Filosofia quanto nos da Teologia:
Como afirmava Paulo VI: [...] "São Tomás, por disposição da Divina Providência, atingiu o cume de toda a Teologia e Filosofia ‘escolástica', como se lhe costuma chamar, e fixou na Igreja o eixo central a cuja volta, então e em seguida, se pôde desenvolver o pensamento cristão em seguro progresso" (Lumen Ecclesiae, 13. 3).

Está nisto a motivação da preferência dada pela Igreja ao método e à doutrina do Doutor Angélico. Longe de preferência exclusiva, trata-se de referência exemplar, que permitiu a Leão XIII declará-lo. "Inter Scholasticos Doctores omnium princeps et magister" (Aeterni Patris, 13). E tal é verdadeiramente São Tomás de Aquino, não só pela sua plenitude, pelo equilíbrio, pela profundidade e pela limpidez do estilo, mas ainda mais pelo vivíssimo sentido de fidelidade à verdade, que podem também dizer-se realismo. Fidelidade à voz das coisas criadas, para construir o edifício da Filosofia; fidelidade à voz da Igreja, para construir o edifício da Teologia (8) .

Justo equilíbrio entre fé e razão

É, porém, na encíclica Fides et Ratio, que o Papa torna mais candente a atualidade do tomismo, propondo-o como justo equilíbrio entre a fé e a razão, "as duas asas do espírito humano":
Embora sublinhando o caráter sobrenatural da fé, o Doutor Angélico não esqueceu o valor da racionabilidade da mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentido de tal racionabilidade. Efetivamente, a fé é de algum modo "exercitação do pensamento"; a razão do homem não é anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos conteúdos de fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente. [...]

Precisamente por esse motivo é que São Tomás foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer Teologia. Neste contexto, apraz-me recordar o que escreveu o meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo centenário da morte do Doutor Angélico: "Sem dúvida, São Tomás possuiu, no máximo grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito quando enfrentava os novos problemas, a honestidade intelectual de quem não admite a contaminação do Cristianismo pela Filosofia profana, mas tampouco defende a rejeição apriorística desta. Por isso, passou à história do pensamento cristão como um pioneiro no novo caminho da Filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que a essência da solução que ele deu ao problema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a genialidade do seu intuito profético, foi o da conciliação entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, aquela tendência antinatural que nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural" (9) .

Bento XVI salienta novamente sua atualidade

Cabe-nos ainda recordar uma recente alocução de Sua Santidade Bento XVI, felizmente reinante, sobre o Doutor Angélico, salientando sua atualidade como solução para o inconsistente conflito entre fé e razão:
O calendário litúrgico recorda hoje São Tomás de Aquino, grande doutor da Igreja. Com seu carisma de filósofo e teólogo, ele oferece um válido modelo de harmonia entre razão e fé, dimensões do espírito humano, que se realizam plenamente no encontro e no diálogo recíproco. Segundo o pensamento de São Tomás, a razão humana, por assim dizer, "respira": isto é, move-se num horizonte amplo, aberto, no qual pode expressar o melhor de si. Ao contrário, quando o homem se limita a pensar só em objetos materiais e experimentáveis e se fecha às grandes interrogações sobre a vida, sobre si mesmo e sobre Deus, empobrece-se. A relação entre fé e razão constitui um desafio sério para a cultura atualmente dominante no mundo ocidental e, precisamente por isso, o amado João Paulo II quis dedicar-lhe uma Encíclica, intitulada Fides et ratio, "Fé e razão". [...]

Quando é autêntica, a fé cristã não mortifica a liberdade e a razão humana; e então, por que fé e razão devem ter receio uma da outra, se ao encontrar-se e dialogando podem expressar-se do melhor modo? A fé supõe a razão e aperfeiçoa-a, e a razão, iluminada pela fé, encontra a força para se elevar ao conhecimento de Deus e das realidades espirituais. A razão humana nada perde abrindo-se aos conteúdos de fé, aliás, eles exigem a sua adesão livre e consciente (10) .

Outros elogios de Papas e catedráticos

Ainda sobre a consagração histórica e universal de São Tomás enquanto filósofo e teólogo, valeria a pena lembrarmos o fato de o Papa João XXII haver afirmado que se aprende mais durante um ano de estudos dedicado às suas obras, em comparação a décadas consagradas ao aprofundamento nos escritos de outros autores (11).

É indispensável, ademais, reconhecer os méritos do Papa Leão XIII em ressaltar os valores científicos das explicitações de São Tomás. Foi por uma ação direta sua - no século XIX, portanto - que surgiram centros de estudos tomistas nas universidades católicas, propiciando, dessa forma, a influência do Doutor Angélico nas descobertas e investigações da ciência. A Biologia, a Química e a própria Psicologia experimental em suas novas conquistas enriqueceram-se, assim, com a seiva doutrinária antiga. Importantes universidades modernas do continente europeu, como também do americano, passaram a se abeberar nos grandes princípios tomistas; por exemplo, Harvard, Oxford, Sorbone e Louvain. Não foi sem razão que Etiènne Gilson, conceituado catedrático da Sorbone, conferiu a São Tomás o título de Pai da Filosofia Moderna. Levou em conta esse mestre o quanto a metafísica de São Tomás constitui a sustentação unificadora da cultura greco-romana batizada e alimentada pelo Cristianismo.

Uma nota essencial do pensamento tomista: Deus é a verdade absoluta

Uma das notas características e até essenciais na elaboração do pensamento de São Tomás está na sua convicção sobre a unicidade da verdade, pois Deus é a Verdade Absoluta e todas as outras que existem esparsas pelo universo são decorrentes da primeira e essencial, tal qual magistralmente esclarece em uma das cinco vias por ele elaboradas para demonstrar a existência de Deus. Por essa razão, não tem o Doutor Angélico o menor receio de servir-se da obra de Aristóteles, filtrada das explicitações inconsistentes dos comentaristas árabes, nem sequer deixa de se aproveitar das doutrinas de Platão para dar ao seu monumental edifício filosófico toda solidez. Evidentemente, teve primordial importância para São Tomás o pensamento elaborado por mestres da própria Igreja, como por exemplo, e sobretudo, Santo Agostinho (12).

Oferecer um contributo ao pensamento moderno por meio de uma clave antiga e nova

Dado o exíguo espaço de um artigo, não pretendemos aqui comentar as numerosas obras densas em substância doutrinária desse gênio hors série da Verdadeira Igreja. Nem sequer em nada nos pervade a pretensão de nos supormos possuidores dos conhecimentos que nos tornariam capazes de apontar todos os méritos da elaboração de nosso Santo Doutor. Queremos apenas abrir um pouco nossos corações e manifestar o porquê de a Faculdade Arautos do Evangelho, assim como o Instituto Teológico São Tomás de Aquino e o Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista, terem tomado por bem promover o estudo da Filosofia e Teologia medievais - destacando de forma especial a doutrina tomista.
Com efeito, os homens e as mulheres de nosso tempo, cansados de procurar a verdade em sistemas de pensamento extremamente contrapostos e diversos, estão sedentos de beber de uma fonte límpida e clara, de haurir a certeza numa escola de pensamento de inspiração cristã, a qual ofereça um sistema não-sujeito às limitações que o divórcio entre a realidade natural e a sobrenatural impõe à inteligência e à vontade humanas.

Pois bem, longe de qualquer anacronismo, o estudo e a pesquisa das fontes tomistas contribuem com uma resposta convincente e profunda àqueles que procuram o alcandor e o esplendor da verdade. Convidamos nosso leitores a usar esse meio de estudo e reflexão com o mesmo espírito que animava o Aquinate a se lançar à busca da sabedoria, tendo bem presente que a vida intelectual de nosso santo Doutor esteve profundamente animada pelo desejo de encontrar ao Deus vivo e verdadeiro e de amá-lo tanto quanto fosse possível a uma criatura. Nunca separou a via da especulação intelectual do caminho da perfeição evangélica, trilhado por ele com admirável zelo. A esse propósito comenta Pio XI:
Como a verdadeira ciência e a piedade, que de todas as virtudes é companheira, estão entre si admiravelmente unidas; e sendo Deus a própria verdade e bondade, não bastaria, é claro, para obter a glória de Deus e a salvação das almas - objetivo principal e próprio da Igreja - que o ministros sagrados fossem bem instruídos no conhecimento das coisas, mas não fossem também abundantemente revestidos das virtudes necessárias. Ora, essa união da doutrina e da piedade, da erudição e da virtude, da verdade com a caridade, foi verdadeiramente singular no Doutor Angélico, ao qual é atribuído como símbolo o sol, pois enquanto leva às mentes a luz da ciência, acende na vontade a chama da virtude (13).

A vida do estudioso católico exige alto grau de conaturalidade com o sobrenatural, e isto obtem-se apenas pela prática séria das virtudes, de forma especial a da pureza. E como o balão, que mais se eleva quanto menos peso transporta, assim a alma contemplativa só alcançará os cumes da sabedoria se tiver o domínio sobre suas paixões. Assim nos expõe o mencionado Pontífice o ‘segredo' da ciência de São Tomás:
Pareceu que Deus, fonte de toda a santidade e sabedoria, quisesse mostrar em Tomás como essas duas coisas se ajudam entre si, do mesmo modo que o exercício da virtude predisponha à contemplação da verdade, e por sua vez a acurada meditação da verdade faça mais puras e perfeitas as próprias virtudes. Pois quem vive de modo íntegro e puro, colocando a virtude como freio às suas paixões, como que livre de um grande impedimento, poderá muito mais facilmente elevar seu espírito às coisas celestes, fixando-se melhor nos profundos mistérios da Divindade, segundo as palavras do próprio Tomás: "primeiro está a vida, depois a doutrina; porque a vida conduz à ciência da verdade"; se o homem aplicar todo o seu estudo em conhecer as coisas que estão acima da natureza, por isso mesmo sentir-se-á muito incentivado a viver a perfeição; uma tal ciência, cuja beleza o entusiasme e a si o atraia, nunca poderá ser árida ou inerte, mas ativa num grau supremo (14).

"Primeiro está a vida, depois a doutrina". Que nos quis dizer o santo com essa máxima tão significativa? Tomás foi então antes santo que doutor? Cabe, pois, uma palavra final sobre alguns traços relevantes de sua vida, à luz deles poderá julgar o leitor.

Ensina-nos Santiago na sua epístola que "se alguém necessita de sabedoria, peça-a a Deus - que a todos dá liberalmente, com simplicidade e sem recriminação - e ser-lhe-á dada" (Tg 1, 5). Assim o fez São Tomás.

Seu grande e insuperável Mestre foi o Santíssimo Sacramento, diante do qual passava rezando horas inteiras, dia e noite. Freqüentemente, no momento auge da celebração da Santa Missa, ou seja, na hora da Consagração do pão e do vinho, não só o milagre da transubstanciação se realizava em suas mãos, como também, sua face se transfigurava. Chegou ele a afirmar ter aprendido muito mais junto ao Santíssimo Sacramento do que em todos os seus estudos (15) . Guilherme de Tocco, o seu primeiro e principal biógrafo, insiste em dizer que Tomás adquirira o hábito de rezar demoradamente quando tinha de vencer um obstáculo, de intervir num debate importante, de ensinar qualquer matéria mais árdua. Ele confessava assim encontrar a solução dos problemas que o torturavam. Quanto ao tempo que o comum dos homens costumam dedicar ao descanso, Tomás o reduziu a quase nada para prolongar este "Sacrum Convivium" com Jesus Eucarístico (16) . O Padre Santiago Ramirez (1975), baseando-se no processo de canonização de Santo Tomás em Nápoles, explica na sua biografia sobre o Aquinate que "Ele era o primeiro a se levantar pela noite, e ia prosternar-se diante do Santíssimo Sacramento. E quando tocavam as Matinas, antes que os religiosos formassem fila para ir ao coro, ele voltava sigilosamente para a sua cela para que ninguém notasse" (17).

Vocação de monge mendicante

Alguns acontecimentos marcaram mais especialmente sua não longa vida. Como flor da nobreza lombarda, descendia ele dos normandos de há muitos séculos, dos quais certamente herdara sua avantajada corpulência. Devido estar localizado no feudo de sua família o mosteiro de Monte Cassino, seus pais viram com grandes esperanças a possibilidade de contar com um filho no trono abacial daquele importante bastião beneditino, e por isso facilitaram seu ingresso na mais famosa ordem religiosa da época, apesar de sua infantil idade. Entretanto, seus tenros cinco anos já o impeliam a indagar aos monges, andando pelos claustros e corredores: "Quem é Deus?" (18) .

"O homem propõe, mas Deus dispõe", diz o ditado. Ao completar catorze anos (1239), devido às dissensões entre Frederico II e o Papa Gregório IX, os pais se viram na contingência de retirá-lo de Monte Cassino e fazê-lo viajar a Nápoles, a fim de estudar na Universidade. Neste período é que entrou em contacto com a Ordem Dominicana na germinação de sua expansão, mas já famosa nos ambientes culturais da época. Ali se revelou sua vocação às vias abertas por São Domingos. Tratava-se de uma ordem mendicante, verdadeiro horror para os padrões mundanos de então, em especial para os anseios de realização familiar de seus pais. Apesar de já ter completado dezenove anos quando ingressou oficialmente nos Dominicanos, sua mãe, Teodora, deu instruções a outros filhos seus, e determinou o seqüestro do jovem Tomás pelos seus próprios irmãos, quando este se deslocava a pé do convento romano de Santa Sabina a Bolonha.

Não durou muito sua prisão na torre de um dos castelos de sua família. Foi alimentado nesse período pelos manjares intelectuais do "Livro das Sentenças", de Pedro Lombardo e, sobretudo, pelas Sagradas Escrituras, as quais, por sua privilegiada memória (19), numa única leitura fixaram-se para sempre em sua lembrança.

Famoso é também o episódio que teve sua origem no perverso plano elaborado e levado a cabo por seus irmãos que introduziram no castelo uma indecorosa cortesã, no intuito de seduzir o Santo; este, por sua vez, serviu-se de um tição agarrado por uma tenaz para expulsá-la do recinto. Imediatamente após, caiu o jovem num profundo sono, durante o qual viu em sonho um anjo que lhe cingia os rins, com o objetivo de confirmá-lo na virtude da castidade (20).

Humildade no estudo

Não tardou a reintegrar-se à Ordem Dominicana, logo após ter cessado sua prisão (1245). Partiu para Paris, acompanhando seu superior geral, e em seguida para Colônia, onde foi formado por Santo Alberto Magno, ilustre doutor da universidade na qual iria receber a alcunha de "boi mudo" pelo fato de ser muito calado, evitando o buliço das discussões. Nenhuma vaidade supera a do ambiente intelectualizado.

Entre os alunos, houve um que por conta própria assumiu a tarefa de atualizar o Santo em todas as lições, até o momento em que, não conseguindo entender a matéria que procurava explicar, ouviu de seu "aprendiz" uma tão extraordinária explicitação que se sentiu na obrigação de transmiti-la a Santo Alberto. É deste episódio que nasceu a famosa frase de Santo Alberto: "Vós o chamais ‘boi mudo', mas eu vos garanto que seus mugidos serão ouvidos no mundo inteiro" (21).

O apogeu de sua carreira

Sete anos mais tarde (1252), enquanto bacharel, passou a ensinar em Paris com vistas a obter o título de mestre ou doutor. Aproveitando-se das horas vagas, nessa ocasião, escreveu seus comentários ao Livro das Sentenças, como também ao Evangelho de São Mateus e a Isaías. Em 1256, já doutorado, escreveu a Suma contra os Gentios. Ao longo de nove anos (1259 a 1268), entre docência e sermões, acompanhou o Papa em seus deslocamentos pela Itália. Foi ao término desse ano que começou a escrever a Suma Teológica (22).

Estando de novo em Paris (1269), o próprio rei da França, São Luís IX, nomeou-o seu conselheiro. É dessa época o episódio ocorrido na corte: durante um banquete real, batendo fortemente sobre a mesa, São Tomás exclamou: "Modo conclusum est contra haeresim Manichaeorum"  (23).

Fenômenos místicos

Conta-se o fato de ter ele ouvido do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, ao concluir um trabalho sobre a realidade ou aparência dos acidentes eucarísticos, esta afirmação: "Bem escreveste sobre o Sacramento de meu Corpo!" Algum tempo depois tornaria ouvir a mesma voz, desta vez saída de um crucifixo: "Escreveste bem sobre Mim, Tomás. Qual prêmio queres?" Ao que o santo teria respondido: "A ninguém, senão a Vós mesmo, Senhor!" (24) Célebre tornou-se também o fato místico ocorrido no ano de 1273, na cidade de Nápoles: ao celebrar a Santa Missa na festividade de São Nicolau, tomou a resolução de não continuar a redação de sua Suma Teológica. "Chegou o término de meus trabalhos. Tudo o que escrevi não é senão palha em comparação com o que me foi revelado" - disse ele (25).

Morte exemplar

Dignas são de nota suas palavras após ter recebido o viático:

"Recebo-te, penhor do resgate da minha alma, recebo-te, viático da minha peregrinação. Por amor de ti, estudei, velei, trabalhei; preguei-te e ensinei-te. Nada disse contra ti, mas se o fiz foi sem o saber; não persisto obstinadamente nos meus juízos; se mal falei em relação a este e aos outros sacramentos, deixo tudo à correção da Santa Igreja Romana, em cuja obediência saio agora deste mundo." (26)

Assim, embevecido na íntima união com Deus, sem nunca ter-se atribuído a si próprio qualquer mérito ou honra vã, e tendo seu espírito submisso ao Magistério Infalível, o santo doutor alcançou a glória do céu. De lá ilumina o firmamento da Igreja com sua ciência filosófica e teológica e serve de exemplo para todos aqueles que se dedicam ao estudo, conforme ensina Leão XIII em sua encíclica Aeterni Patris:
Também nisto sigamos o exemplo do Doutor Angélico, que nunca se pôs a ler e escrever sem antes se ter encomendado a Deus com seus rogos, e confessou candidamente que tudo o que sabia não tinha adquirido tanto com seu estudo e trabalho, senão que o tinha recebido de modo divino. Nesta mesma intenção roguemos todos juntos a Deus com humilde e concorde súplica, a fim de que derrame sobre todos os filhos da Igreja o espírito de ciência e entendimento e lhes abra os sentidos para entender a sabedoria (27).

À luz dessa tão modelar despretensão de São Tomás, rogamos a Deus por intercessão de Maria Santíssima, "Sedes Sapientiae", que a Revista Lumen Veritatis possa vir a ser um instrumento para esclarecer os espíritos e acender os corações, sabendo que "toda dádiva boa e todo dom perfeito vêm de cima: descem do Pai das luzes" (Tg 1, 17).
 1. O autor é sacerdote, Fundador e Presidente Geral dos Arautos do Evangelho, membro da Sociedade Internacional São Tomás de Aquino (SITA) e fundador desta revista.
2. Sobre Alexandre Magno, cf. Gran Enciclopedia Rialp, Vol. I, Madrid: Rialp SA, 1971, p. 532-536.
3. Sobre a conduta moral de Alexandre Magno, tanto na vida privada como na sua atuação pública, a apreciação dos historiadores diverge. Alguns, como Vitor Davis Hanson, que em sua obra The Wars of the Ancient Greeks and their Invention of Western Military Culture compara esse personagem grego a Hitler, o consideram um imperialista, outros pretendem julgá-lo segundo as normas de seu próprio tempo. À luz da doutrina cristã, muito bem poderia aplicar-se àquele tirano a crítica aos desvios dos pagãos feita por São Paulo (Rm 20-32).
4. WEISS, J. B. Historia Universal, Barcelona, Tip. de la Educación, 1929, Vol. VII, p. 170.
5. PAULO VI. Lumen Ecclesiae, n. 24. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2007.
6. JUAN PABLO II. Código de Derecho Canónico. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2007. Tradução nossa.
7. JOÃO PAULO II. VIII Congresso Tomista Internacional. Discurso aos participantes. 13 set. 1980. Disponível em: . Acesso em: 29 jun. 2007.
8. Idem.
9. JOÃO PAULO II. Fides et Ratio, n. 43. Disponível em: . Acesso em: 21 maio 2007.
10. BENTO XVI. Ângelus. 28 jan. 2007. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2007.
11. Seguem-se as palavras pronunciadas pelo Papa João XXII: "Veneráveis Irmãos, consideramos como uma grande glória para nós e para toda a Igreja inscrever este servo de Deus no catálogo dos santos, com tanto que possamos verificar alguns milagres devidos à sua intervenção. Ele [sozinho] iluminou a Igreja mais que todos os outros doutores, e num só ano aproveita-se mais a leitura de seus escritos, como não se faria estudando durante a vida inteira a doutrina dos outros teólogos". In: JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d'Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895. Tradução nossa.
12. Cf. WEISHEIPL. James A. Tomás de Aquino. Vida, obras y doctrina. Pamplona: Universidad de Navarra S.A., 1994
13. PIO XI, Encíclica Studiorum Ducem, 29 de junho de 1923. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19230629_studiorum-ducem_it.html. Acesso em: 23 maio 2007.
14. Idem.
15. "Sua alma entrava num comércio íntimo com Deus. Seu corpo se tornava imóvel, suas lágrimas corriam em abundância, e diversas vezes o vimos elevado da terra vários cúbitos. Era o momento no qual São Tomás adquiria os mais altos conhecimentos, encontrava infalivelmente a solução de suas dificuldades, a compreensão dos textos da Escritura, e as decisões teológicas das quais tinha necessidade. Ele mesmo confidenciou a Frei Reginaldo, seu confessor, ter aprendido mais através de suas meditações, na igreja, diante do Santíssimo Sacramento, ou em sua cela aos pés do Crucifixo, que em todos os livros por ele consultados." JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d'Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895. Tradução nossa.
16. Cf. AMEAL, João. São Tomás de Aquino. Iniciação ao estudo da sua figura e da sua obra. 3ª ed. Porto: Tavares Martins, 1947, p. 131.
17. RAMÍREZ, S.: Introducción a Tomás de Aquino, Madrid, BAC. 1975¬, p. 83-84¬.
18. CHESTERTON. G. K. Santo Tomás de Aquino: biografia. Tradução e notas de Carlos Ancele Nougué. São Paulo: LTr, 2003
19. "De fácil e penetrante engenho, de memória fácil e tenaz..., amante unicamente da verdade. Assim designa Leão XIII a São Tomás. Aqueles que o conheceram pessoalmente foram mais explícitos. Sua inteligência era rápida, profunda, equilibrada; prodigiosa sua memória; insaciável sua curiosidade, e sua laboriosidade não conhecia descanso. Compreendia com facilidade quanto lia ou ouvia, e o retinha fielmente em sua memória como no melhor fichário." In: RODRIGUES, Vitorino. Temas-clave de humanismo cristiano. Speiro. Madrid, 1984, p. 321.
20. Cf. JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d'Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895, p. 77
21. Cf. AMEAL, João. Ibidem, p. 56.
22. Cf. GRABMANN, Martinho. Introdução à Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. Vozes, Petrópolis, 1944, p. 17.
23. "Agora, está liquidada a heresia dos maniqueus" (Tocco, Vita S. Thomae, cap. XLIV). In AMEAL, João. Ibidem, p. 133.
24. Cf. NICOLAS, Marie-Joseph. Introdução à Suma Teológica. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2003.
25. Cf. AMEAL, João. Ibidem, p. 145.
26. Idem, ibidem, p. 154.
27. LEÓN XIII, Encíclica Aeterni Patris, 4 de agosto de 1879. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_04081879_aeterni-patris_sp.html. Acesso em: 23 maio 2007. Tradução nossa.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

O QUE ESTARIA POR TRÁS DO ATUAL CLIMA DE VIOLÊNCIA NO BRASIL?


O clima atual de violência no Brasil tem método, organização, é fruto de uma inteligência que a promove, ou é obra do mero acaso? Um artigo publicado em 1983, de Plinio Corrêa de Oliveira, já previa a que ponto chegaria tal clima. Ei-lo:
Quatro Dedos Sujos e Feios

Por: Plínio Corrêa de Oliveira
“A perplexidade se dá bem com macias cadeiras de couro, nas quais o homem sente afundar-se gostosamente. É que há certa analogia entre estar atolado em questões perplexitantes, e em poltronas de molas macias. O homem perplexo, afundado em couros, fica atolado tanto de corpo como de alma, o que confere à situação dele essa unidade que nossa natureza pede insistentemente, a todo propósito.
É verdade que tal unidade não vai aí sem alguma contradição. As perplexidades constituem para a mente um atoleiro penoso. Um purgatório. Por vezes quase um inferno. Pelo contrário, os couros e as molas proporcionam ao corpo cansado um atoleiro delicioso, reparador. Mas essa contradição não fere a unidade. E diminui o tormento do homem, em vez de o acrescer.
Para prová-lo ao leitor, bastaria a este imaginar quão pior seria a situação de um homem perplexo, sentado num duro banco de madeira...
Ocorreu-me isto tudo ao recordar que, numa noite destas, chegado ao termo o jantar, resolvi refletir sobre a situação nacional, atoleiro no sentido mais preciso e sinistro do termo. E para isto me afundei instintivamente em uma profunda e macia poltrona de couro. Comecei então a pensar...
A ronda macabra dos vários problemas pátrios, ideológicos, sociais e econômicos, começou a dançar em meu espírito. A fim de ver claro, eu procurava deter a feia ciranda, de modo a analisar, uma por uma, as várias questões que a formavam. Mas estas pareciam fugir a toda avaliação exata, executando cada qual, diante de meus olhos por fim fatigados, um movimento convulsivo à maneira do "delirium tremens". Pertinaz, eu insistia. Mas elas, não menos pertinazes do que eu, aumentavam seu tremor, e de repente retomavam em galope sua ciranda.
Febre? Pesadelo? O certo é que me senti subitamente em presença de um personagem muito real, de carne e osso...
E eu, que tinha intenção de comunicar aos leitores o resultado de minhas lucubrações, fiquei reduzido a contar-lhes o que este personagem me disse.
O tal homem a-temporal me tratava de você, com uma certa superioridade que tinha seu tantinho de irônico e de condescendente. E, pondo em riste o indicador curto e pouco limpo da mão direita, como para me anunciar uma primeira lição, sentenciou: "Saiba que eu, o comunismo, fracassei neste sossegado Brasil. O PC é aqui um anão que dá vergonha. Por isso, evito de o apresentar sozinho em público. O sindicalismo não me adiantou de nada. Possuo muitos de seus chefes, mas escorre-me das mãos o domínio sobre suas bases bonacheironas ("pacifistas", diria você). Entrei pelas Cúrias, pelas casas paroquiais, seminários e conventos. Que belas conquistas eu fiz. Mas ainda aí prosperei nas cúpulas, porém a maior parte da miuçalha carola me vai escapando. Noto, Plinio, sua cara alegre ante minha envergonhada confidência. Você me reputa derrotado. Bobão! Mostrar-lhe-ei que tenho outros modos de progredir.
— Você duvida?
— Sim, eu duvidava.
Então ele levantou teatralmente, ao lado do dedo indicador, o dedo médio, um pouco mais longo e não menos rejeitável. E entrou a dar sua segunda lição.
"Começarei por um sofisma. Farei o que você não imagina: a apologia do crime. Sim, direi por mil lábios, através de mil penas, milhões de vídeos e de microfones, que a onda de criminalidade, a qual tanto assusta os repugnantes burgueses, raramente nasce da maldade dos homens. Nas tribos indígenas, os crimes são mais raros do que entre os civilizados. O que quer dizer que o crime nasce entre nós das convulsões sociais originadas da fome. Elimine-se a fome, desaparece o crime. Como, aliás, também a prostituição.
"Quem você chama de criminoso é uma vítima. Sabe quem é o criminoso verdadeiro? É o proprietário. Sobretudo o grande proprietário. Principalmente este é que rouba o pobre.
"Enquanto um ladrão de penitenciária rouba um homem, o proprietário rouba um povo inteiro. Seu crime social é de uma maldade sem nome!"
O delírio leva a muita coisa. Pensei em expulsar o jactancioso idiota. Mas o comodismo me manteve atolado em minha poltrona. Furibundo e inerte, deixei-o continuar.
Ele levantou o dedo anular, feio irmão dos dois que já estavam erguidos. E prosseguiu.
"Há mais uma "seu" Plinio. À vista de tudo quanto eu disse, um governo consciente de suas obrigações tem por dever desmantelar a repressão e deixar avançar a criminalidade. Pois esta não é senão a revolução social em marcha. Todo assassino, todo ladrão, todo estuprador não é senão um arauto do furor popular. E por isto farei constar ao mundo inteiro que a explosão criminal no Brasil está sendo caluniada por reacionários ignóbeis. A criminalidade é a expressão deste furor justamente vindicativo das massas, que os sindicatos e a esquerda católica não souberam galvanizar."
Suspendendo o minguinho, miniatura fiel dos três dedos já em riste, meu homem riu. "Farei entrar armas no Brasil. Quando os burgueses apavorados estiverem bem persuadidos de que não há saída para mais nada, suscitarei dentre os que você chama "criminosos", um ou alguns líderes, que saberei camuflar de carismáticos. E farei algum bispo anunciar que, para evitar mal maior, é preciso que os burgueses se resignem a tratar com aqueles que têm um grau de banditismo menor.
"Vejo a sua careta. Você está achando a burguesia preparada para cometer mais esse erro. Tem razão. Assim se constituirá um governo à Kerensky, bem de esquerda. O dia seguinte será do Lênin que eu escolher."
Levantei-me para agarrar o homem. Quando fiquei de pé, acabei automaticamente de acordar. Ou cessou a febre...
Escrevi logo quanto "vira" e "ouvira", pois só até poucos minutos depois da febre ou do sono, tais impressões se podem conservar com alguma vitalidade.
Leitor, desejo que elas não lhe dêem febre. Se é que, antes de terminar a leitura, elas não lhe darão sono.
Este não será, em todo caso, um tranqüilo sono de primavera. Mas estará em consonância com essa metereologia caótica dos dias aguados e feios com que vai começando novembro.
P.S. — A Polícia paulista parece hoje em reviravolta. Que diria a isto o hominho dos quatro dedos sujos? Em São Paulo, e pelo Brasil afora, que rumo tomará o buscapé da subversão? Parar, não parará...”    ("Folha de S. Paulo", 16 de novembro de 1983)

Observação: não teria sentido qualquer ligação entre o personagem do Dr. Plínio, o "homenzinho de quatro dedos sujos e feios", e o político Lula, o qual, apesar de também possuir quatro dedos numa mão (por sinal, o "minguinho"é o único que falta nele, e é um dos citados no artigo), na época do presente artigo (em 1983) nem sequer cogitava de se candidatar a presidente.


terça-feira, 10 de janeiro de 2017

MANIFESTAÇÃO DE ÓDIO DA REVOLUÇÃO FRANCESA, A FESTA DA DEUSA RAZÃO PROFANA NOTRE-DAME DE PARIS



Plinio Corrêa de Oliveira

Hoje não há Santo em nosso calendário. Vamos estudar, portanto, uma das fichas de ódio revolucionário. É uma ficha tirada do livro “História Universal”, de João Batista Weiss[1]
“Para aumentar na população a sede de sangue” - é durante a Revolução Francesa isso - “e o ódio contra o Cristianismo, anunciou-se para o dia 10 de novembro de 1793, em que Chaumette ( Pierre Gaspard Chaumette ) começou a profanação dos templos em Paris, uma festa em honra de Charrier, o deus salvador, como uma festa da Razão.
Charrier fazia o papel de salvador, portanto, do gênero humano. Eu mesmo não sei quem é esse Charrier.
(Era um revolucionário que cometeu grandes atrocidades em Lyon. Era quase comunista. Até não se tornou comunista claramente, porque morreu, foi assassinado. Foi organizada uma festa em homenagem a ele depois da sua morte. Ele foi considerado como uma espécie de redentor, de messias).
Os senhores estão vendo, portanto: é um verdugo, um homem que cometeu atrocidades etc., e foi considerado um deus. E a festa dele, - isso é bem a coisa do demônio, - foi um dia de festa da Razão. Mas isso é bem assim: o demônio promete: “vou dar a você a independência de sua razão”. Tenha a certeza que ele vai tirar.
Então, a festa da Razão é pegar um criminoso e aclamar como Deus! Isso é a Razão! As coisas se passam assim.
“E na madrugada troaram os canhões em honra do novo deus. Às oito horas começaram os roubos de todos os vasos sagrados de ouro e prata, a destruição de todas as imagens e estátuas das igrejas, a aniquilação de todas as coisas que podiam suscitar um sentimento de devoção. As hóstias consagradas foram jogadas ao chão e calcadas aos pés.
Logo começou a grande procissão em honra de Charrier. Ia adiante a música militar, depois, quatro jacobinos”
Jacobinos os senhores sabem que é uma espécie de comunista do tempo.
“... levavam num formoso palanque um busto de Charrier e, de outro lado, uma urna onde iam suas cinzas”.
Ele, portanto, tinha morrido.
“E, de outro lado, uma pomba com que se dizia ele tinha brincado no cárcere e tinha tido com ela suas últimas alegrias. Uma banda de clubistas,
É do clube dos jacobinos
“... e de mulheres - de lo último, não quero qualificar, - iam gritando continuamente: Abaixo os aristocratas! Viva a república! Viva a guilhotina!”
Os senhores estão vendo como os revolucionários entendem bem o nexo entre as coisas. Fazem uma festa em que, ao mesmo tempo em que profanam as hóstias e quebram as imagens, gritam “abaixo a aristocracia” e “viva a guilhotina”. Isso para adorar o novo deus.
Agora, certos católicos a quem falamos de aristocracia respondem: “Ah, não sei o que tem isso a ver com a religião”. Os revolucionários sabem. O demônio sabe. O bandido sabe. Os católicos, muitas vezes, não sabem. Essa é a miséria das coisas.
“Depois vinham os profanadores das igrejas, que com a insígnia das bacantes e a barbárie dos demônios iam bebendo, se embriagando, usando os vasos sagrados, os cálices sagrados. Além disso, traziam um asno com uma mitra de bispo na cabeça, uma capa pluvial nas costas, um crucifixo e um Antigo e Novo Testamento pendurados no pescoço. O asno levava também uma estola. Atrás do asno vinham três comissários da Convenção, quer dizer, três representantes da Comissão: Fouché, Collot d’Herbois e Laporte, com ares devotos” - para estimular a risada - “debaixo de um pálio, como se usa na procissão do Santíssimo Sacramento. Uma escolta militar encerrava a procissão, [que] se moveu por muitas ruas até a praça [do] Terror.
Ali se tinha erigido, sobre uma elevação, um novo altar, sobre o qual se colocou com veneração, para ser adorado, o busto do novo deus Charrier. Formou-se um círculo em torno do altar, do qual saíam, um depois do outro, cada um dos comissários da Comissão. [Um por um] dobrou os joelhos e disse uma oração no sentido da nova religião do assassinado.
E a oração é essa: - essa é a oração de Collot d’Herbois, que é um dos principais bandidos de Revolução Francesa
“deus e salvador, olha a nação prostrada a teus pés, pedindo-te perdão pelo ímpio crime que pôs fim à vida do mais virtuoso dos homens. Tu hás de ser vingado! Nós te juramos pela república!” Fouché suspirou primeiro e depois pronunciou essas palavras:
Fouché era padre apóstata.
“Mártir da liberdade! Os canalhas te sacrificaram, o sangue dos criminosos é a única água lustral que pode expiar a tua alma, com razão irritada. Charrier, Charrier, nós juramos, diante de tua santa imagem, tomar vingança de tua execução. Sim, o sangue dos aristocratas te perfumará como um incenso”. E o inábil Laporte beijou, cheio de veneração, a fronte da imagem e só disse: “morte aos aristocratas!” Logo se pôs fogo a um turíbulo e se incensou a imagem daquele monstro. Todos jogaram ao fogo então crucifixos, Antigo e Novo Testamento e se deu a beber ao burro com um cálice. Jogaram no chão hóstias sagradas e as calcaram aos pés. Eu consegui tirar do meio dos objetos profanados um objeto sagrado que eu guardei para evitar que a multidão o profanasse”.
Acho que para os senhores não é muita surpresa, talvez, que a Revolução Francesa tenha cometido esses horrores. Os senhores precisam pensar é no que se passa em nossos dias. Quer dizer, esse espírito não mudou. A Revolução Francesa não pode ser vista como uma explosão de loucura que acabou, e depois dela passaram cento e cinqüenta anos de paz. Mas, pelo contrário, o espírito da Revolução Francesa foi se tornando cada vez mais radical, cada vez mais intenso. As suas crueldades foram [se] repetindo nas revoluções engendradas pela Revolução Francesa. Para não exemplificar outra, pela Revolução Comunista russa de 1917, e tantas outras revoluções comunistas que tem havido.

(Conferência "Santo do Dia", 5 de setembro de 1969)




[1]  WEISS, J. B., Historia Universal, Barcelona, Tip. de la Educación, 1929