sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O SONHO DE SÃO JOÃO BOSCO SOBRE O BRASIL




A Igreja comemora hoje, 31 de janeiro,  a festa de São João Bosco, o Fundador dos Salesianos. Trata-se de um dos mais extraordinários educadores  que já houve em toda a história da humanidade. De família humilde, mas bem dotado de carismas pessoais, São João Bosco conseguiu arregimentar centenas de jovens carentes e, instruindo-os, torná-los cidadãos honrados, cristãos verdadeiros e realizados na sociedade, inclusive alguns chegaram até mesmo a ser santos, como Domingos Sávio.  Ficou famoso também por causa de seus diversos sonhos proféticos, alguns deles relacionados ao futuro da Igreja.

Um sonho profético de Dom Bosco sobre a América do Sul


Em 21 de abril de 1960, o Brasil inaugurou sua nova capital, Brasília, cuja construção deixou rico e famoso o arquiteto Niemyaer. Logo depois foi divulgada a versão de que um sonho de São João Bosco sobre o Brasil dizia respeito a uma “nova civilização”, rica e poderosa, que iria surgir exatamente no local onde a nossa capital foi construída. Quer dizer, seria o modelo arquitetônico (tão badalado antigamente por uma suposta beleza, mas hoje, finalmente, visto em seu devido lugar como uma das mais horrorosas obras de arquitetura jamais vistas)  imaginado para expressar não somente Brasília, mas uma “nova civilização”.  Referida interpretação foi espalhada, inclusive, ao exterior. Realmente existiu referido sonho, ocorrido em 1883, que o próprio Dom Bosco narrou numa reunião da Congregação Salesiana no dia 4 de setembro daquele ano. O padre Giovanni Batista Lemoyne, encarregado de recolher as memórias do Santo, fez a transcrição do referido sonho, submetendo-o depois ao próprio Dom Bosco para correções. Tal texto foi publicado nas “Memorie Biografiche” de São João Bosco em 1935. Trascrevemos abaixo a versão em português do referido sonho:


“Na noite que precedia a festa de Santa Rosa de Lima, 30 de agosto, tive um sonho. Percebi que estava dormindo e parecia-me, ao mesmo tempo, correr a toda velocidade, a ponto de me sentir cansado de correr, de falar, de escrever e de esforçar-me no desempenho das ocupações costumeiras. Enquanto hesitava se tratava de sonho ou de realidade, pareceu-me entrar em um salão, onde se achavam muitas pessoas, falando de assuntos vários”.

“... Nesse interim, aproximou-se de mim um jovem de seus dezesseis anos, amável e de beleza sobre-humana, todo radiante de viva luz, mais clara que a do sol...”.

Referido guia que era, como se vê, um anjo, acompanhou-o durante toda a misteriosa viagem. Apresentou-se como amigo dele e dos Salesianos, dizendo-lhe que em nome de Deus ia dar-lhe um pouco de trabalho; continua São João Bosco:

“- Vejamos de que se trata. Que trabalho é esse?
- Sente-se a esta mesa e puxe esta corda.
Havia, no meio daquele salão, uma mesa, sobre a qual estava enrolada uma corda. Vi que essa corda estava marcada com linhas e números, como se fosse uma fita métrica. Percebi, mais tarde, que aquele salão estava situado na América do Sul, exatamente por sobre a linha do Equador, correspondendo os números impressos na corda aos graus geográficos de latitude...”
“...Observo que então via tudo de conjunto, como que em miniatura. Depois, como direi, vi tudo em sua real grandeza e extensão. Foram os graus marcados na corda correspondendo exatamente aos graus geográficos de latitude, que me permitiram gravar na memória os sucessivos pontos que visitei, viajando na segunda parte do sonho.”
“Meu jovem amigo continuava: - Pois bem, estas montanhas são como balizas; são um limite. Entre elas e o mar está a messe oferecida aos Salesianos. São milhares, são milhões de habitantes que esperam o seu auxílio; aguardam a fé.”
“Aquelas montanhas eram as Cordilheiras da América do Sul e aquele mar o Oceano Atlântico...”
“...Eu ia pensando: Mas para se conseguir isto, vai ser preciso muito tempo. Enfim exclamei em voz alta: Não sei mais o que responder.
Mas o moço, lendo meus pensamentos, ajuntou:
- Isto acontecerá antes que passe a segunda geração.
E qual será a segunda geração?
- A presente não se conta. Será uma outra, depois outra.
- E quantos anos compreende cada geração dessas?
-Sessenta anos.
-E depois?
- Quer ver o que sucederá depois? Venha cá.
E, sem saber como, encontrei-me numa estação de estrada de ferro. Havia muita gente. Embarcamos.
Perguntei onde estávamos. Respondeu o moço:
- Note bem! Observe! Viajaremos ao longo da cordilheira. O senhor tem estrada franqueada também para leste, até o mar. É outro dom do Senhor.”.
Assim dizendo, tirou do bolso um mapa, que mostrava assinalada a diocese de Cartagena (Colômbia). Era o ponto de partida.
“Enquanto olhava o mapa, a máquina apitou e o trem se pôs em movimento. Viajando, meu amigo falava muito, mas nem tudo eu podia entender, por causa do barulho do comboio. Aprendi, no entanto, coisas belíssimas e inteiramente novas sobre astronomia, náutica, meteorologia, sobre a fauna, a flora e a topografia daqueles lugares, que ele me explicava com maravilhosa precisão...
Ia olhando através das janelas do vagão e descortinava variadas e estupendas regiões. Bosques, montanhas, planícies, rios tão grandes e majestosos que não era capaz de os acreditar assim tão caudalosos, longe que estavam da foz. Por mais de mil milhas, costeamos uma floresta virgem, inexplorada ainda hoje. Meus olhos tinham uma potência visual maravilhosa, não encontrando obstáculos que os detivessem de estender-se por aquelas regiões.
Enxergava nas vísceras das montanhas e no subsolo das planícies. Tinha debaixo dos olhos as riquezas incomparáveis daqueles países, riquezas que um dia serão descobertas. Via numerosos filões de metais preciosos, minas inexauríveis de carvão, depósitos de petróleo tão abundantes como nunca se encontraram até então em outros lugares.
Mas não era tudo. Entre o grau 15 e 20, havia uma enseada bastante extensa, que partia de ponto onde se formava um lago. Disse então uma voz repetidamente: - quando se vierem cavar as minas escondidas em meio a estes montes, aparecerá aqui a terra prometida, que jorra leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.”.
Continuava a viagem, ao longo da cordilheira, rumo ao sul.
“De novo pôs-se o trem em movimento, indo sempre para a frente. Como na primeira parte da viagem, atravessamos florestas, passávamos por túneis e viadutos gigantescos, internávamos por entre gargantas, costeávamos lagos e pantanais, transpúnhamos caudalosos rios, percorríamos, enfim, pradarias e planícies. Passamos, assim, as margens do Uruguai.”.

E continua a descrição das regiões fronteiriças, através da bacia do Prata, dos Pampas e da Patagônia, até o Estreito de Magalhães. Começa a viagem de volta. Na Patagônia, Dom Bosco se entretém com os seus salesianos (de geração futuras). Atravessa a Argentina, penetra em uma floresta muito espessa, enorme, onde presencia o massacre de um estrangeiro, entregue à sanha de ferozes canibais.
Prossegue às margens de caudaloso rio, atravessando, afinal, uma região infestada de animais ferozes e de répteis repelentes. Estão chegando ao fim da viagem:

O trem se aproxima do lugar da partida e já estávamos a pouca distância. O jovem guia tirou do bolso uma carta geográfica de incrível beleza e me disse:
-Quer ver a viagem que o senhor fez? As regiões percorridas?
- Com muito gosto.
Desdobrou então o mapa, em que se desenhava com admirável exatidão toda a América do Sul. Ademais, já estava representado tudo o que existia, que existe, e haverá de existir naquelas regiões, sem confusão de espécie alguma, pelo contrário, com tal nitidez que, de um só relance, se abrangia tudo. Compreendi tudo no instante, mas, pela multiplicidade das circunstâncias, durou pouco tal clareza, cedendo lugar à completa confusão que ora me ocupa a mente.
Enquanto observava aquele mapa, esperando que o rapazinho acrescentasse ainda alguma explicação, agitado que estava pela surpresa de tudo quanto vira, pareceu-me que soassem as Ave-Marias, ao alvorecer. Despertando, percebi que eram os sinos da paróquia de São Benigno.
O Sonho durara a noite inteira”.



Fonte: Brasília, novembro 1995
Folheto entregue na Inauguração de Brasília





Pelo que se viu acima, a ligação do sonho de São João Bosco com a fundação de Brasília é uma ilação forçada e sem sentido, assim também como interpretações sobre uma possível civilização grandiosa e rica: ele fala apenas no descobrimento de muitas riquezas. Como veremos adiante, houve quem fosse mais além e chegasse até mesmo a torcer as  palavras do Santo a favor desta interpretação tendenciosa por Brasília. 
Eis outro relato:


A propósito do sonho de D. Bosco vale a pena relembrar como foi ele trazido à tona. Quem primeiro, no Brasil, teria mencionado o sonho, diz-se ter sido Monteiro Lobato, em sua luta pela prospecção do petróleo no país. - Até um santo já afirmou que o petróleo existe, só nossos "técnicos" dizem que não - fora o desabafo do escritor-empresário...

...A referência, no sonho, a petróleo e a pantanais, mexeu com Monteiro Lobato, que defendia exatamente (e com paixão) a existência do ouro negro no pantanal matogrossense.

Muitos anos depois, quando o governador de Goiás José (Juca) Ludovico, incumbiu Segismundo Mello de preparar um livrinho que reunisse os pronunciamentos de todas as personalidades que defendessem a localização da futura Capital no planalto goiano, Segismundo, que, por sinal, desconhecia o episódio de Monteiro Lobato, lembrou-se de procurar Alfredo Nasser[1], importante homem público goiano, que havia escrito um artigo defendendo a mudança da Capital para Goiás e utilizara o sonho-visão de D. Bosco como reforço de argumentação.

Aconteceu, então, um fato curioso: a publicação era bem antiga e Nasser não se recordava dela e muito menos de haver mencionado o sonho que ele, surpreendentemente, confessou nem se lembrar onde buscara.

Segismundo recorreu ao seu cunhado Germano Roriz, grande amigo dos salesianos, e, por intermédio dele, obteve do padre Cleto Calimar uma cópia do sonho com sua tradução para o português.

Ao ler a tradução, Segismundo se decepcionou um pouco. O que havia, no sonho, que talvez dissesse respeito à construção da Capital no Planalto, resumia-se a um trecho não muito explícito:

Tra il grado 15 e il 20 grado vi era uno seno assai lungo e assai largo che partiva da un punto ove formavasi un lago. Allora una voce disse repetutamente: - Quando se verrano a scavare le minere nascoste in mezzo a questi monti, apparirá qui la terra promessa fluente latte e miele. Sará una ricchezza inconcepíbile.”

"Entre os graus 15 e 20, aí havia uma enseada bastante extensa e bastante larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Nesse momento disse uma voz repetidamente: - Quando se vierem a escavar as minas escondidas em meio a estes montes, aparecerá aqui a terra prometida, onde correrá leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.”

Conta Pe. Cleto que Segismundo Mello, depois de ler, lhe perguntou:
- Padre Cleto, aqui não está bem sintetizado o problema da futura Capital. D. Bosco se refere a riquezas incalculáveis e à formação de um lago. O senhor não poderia dar um jeito para que a visão tivesse mais um sentido de cidade, de civilização?

Segundo o sacerdote, sua resposta foi a de que talvez pudesse fazer alguma coisa, mas correriam por conta e risco de Segismundo as conseqüências...

Antes da impressão do livro, Segismundo teve tempo de refletir e decidiu que o texto do sonho seria reproduzido de acordo com o original, a fim de resistir a qualquer confronto; mas o livrinho publicaria uma foto de D. Bosco e na legenda, então, se diria algo mais... E assim foi feito. Na legenda se escreveu o seguinte:
"São João Bosco, que profetizou uma civilização, no interior do Brasil, de impressionar o mundo, à altura do paralelo 15°, onde se localizará a nova Capital Federal". (*)

Essa expressão, "uma civilização de impressionar o mundo", que não consta do sonho nem foi usada por D. Bosco hora nenhuma, acabou por se transformar na síntese "oficial" do sonho-visão, a ela se reportando expressamente, com pequenas variações, todos quantos ao sonho já se referiram, ligando-o à construção de Brasília.

E foi por esta forma que puderam os goianos, espertamente, alcançar seu objetivo de vincular o santo à tese de se erguer em Goiás a nova Capital do país.

(*) - Aqui está a origem da lenda sobre uma suposta civilização no sonho de São João Bosco


 
OUTROS SONHOS
Quem quiser conhecer outros sonhos de São  João Bosco acesse os sites abaixo:

SONHO SOBRE A CRISE NA IGREJA (Adaptação do livro "Quarenta Sonhos de S. João Bosco", compilado e editado por Pe. J. Bachiarello, S.D.B.)





[1] Alfred Nasser foi jornalista e político de esquerda, ministro da justiça de Goulart, era mais propenso ao sensacionalismo demagógico da época.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Diversões de ontem e de hoje


Como é que as pessoas se distraem nos dias atuais? O termo mais utilizado para isso é “lazer”, algo de primordial e tão ou mais importante do que o próprio trabalho. De tal forma que chama a atenção de todos quando ocorrem os “feriados prolongados”, concorrendo para que as pessoas disponham de seu lazer por mais tempo do que o normal. Se analisarmos que o lazer só é praticado quase que exclusivamente nos dias de folga, quando não se trabalha ou se estuda, verificamos que o tempo é pouco para tão ansiosa tarefa. É claro que as pessoas desfrutam certo lazer também nos dias de trabalho, mas isso se restringe geralmente ao computador e à TV, e assim mesmo somente quando se chega em casa. Nos fins de semana temos, então, os clubes onde se praticam esportes e jogos (além dos banhos de piscinas) e as praias, quase que uma obsessão para muita gente. Há outros tipos de lazer, como, por exemplo, passear ou assistir filmes nos shoppings (tumultuados agora pelos “rolezinhos”), praticar esportes radicais, etc. Muitos dos lazeres modernos são praticados quase que exclusivamente por pessoas da classe média para cima. A maioria da população não tem condições financeiras para praticar as diversões atuais mais em voga, nem sequer para frequentar o tão corruptor cinema. Falam muito sobre o “churrasco na laje”, uma das poucas opções que os mais pobres têm para seus momentos de lazer. A maioria nem sequer tem condições de fazer o almejado churrasco, mas sentam-se nas calçadas e ali mesmo consomem cervejas e tira-gostos, talvez um lazer mais sadio do que os praticados pelos das classes mais altas. Quando as crianças vão para a escola, lá encontram o lazer no tradicional e insubstituível recreio, onde se brinca à vontade. Terminada a escola, vão para suas casas, mas, a maioria não pode andar de bicicleta porque não há área apropriada no prédio onde reside ou nas ruas, muito perigosas. Brincar, somente com algum amiguinho que geralmente mora longe, e assim mesmo somente em fins de semana. E, quais são seus brinquedos? Instrumentos eletrônicos e, ultimamente, joguinhos da internet, fazendo com que estas crianças se tornem verdadeiros “autistas consentidos” por viverem num mundo mais virtual do que real. A não ser a TV e o computador, quase não se divertem quando estão em casa. E se for brincar e fazer algum barulho, logo os adultos gritam reclamando que estão lhes atrapalhando de assistir a TV. É quando a ditadura do lazer adulto sufoca o lazer infantil.
E quanto aos adultos? Geralmente trabalham durante todo o dia. Chegam à casa já de noite, cansados e estressados da vida moderna, procurando abafar suas frustações com um tipo de lazer alienante, que é a TV ou o computador. O maior problema destes instrumentos é que tornam as pessoas muito solitárias, pois em geral os usam como forma de lazer individual, não como o fazem as crianças nos seus recreios que desfrutam um lazer coletivo. Talvez se os adultos descobrirem que a conversa em família traz bons momentos de lazer, terão então descoberto um tipo de diversão que não aliena e produz mais frutos do que TV e computador. A diversão mais procurada, no entanto, são as praias, sempre lotadas de gente. Se alguém tiver o cuidado de observar vai ver quão custosas e incômodas são tais diversões! Vê-se filas quilométricas de veículos que fogem das grandes capitais, especialmente de São Paulo, onde não há praias, atravessando grandes transtornos antes de chegar ao desejado paraíso dos prazeres. Mas, tal problema também existe nas cidades litorâneas. As pessoas passam mais tempo nos engarrafamentos estressantes do que em seus banhos de mar. Banho? Como é que pode se chamar de banho uma coisa que a pessoa precisa lavar-se quando chega em casa? Em geral, as pessoas chegam das praias sujos de areia ou suadas, muitos inclusive irritados com os problemas enfrentados no caminho. E chamam a isso de diversão!
Há também o futebol. Os estádios enchem-se e se esvaziam de acordo com as paixões despertadas pelas torcidas, incentivadas pela mídia para atrair multidões aos jogos. A “febre” do futebol cativou milhões de pessoas no mundo moderno. E para caracterizar o gosto que cada um tem por seu time usam termos efusivos como “paixão” e “fanatismo”. De modo geral, só falam das alegrias que o futebol traz para alguns e pouco sobre as tristezas, que, aliás, são muito maiores e terríveis do que as alegrias. Basta dizer que se temos quarenta times disputando um campeonato e apenas um é o campeão, isso significa que as torcidas dos outros 39 vão sofrer e apenas uma vai ter alegria. Na Copa do Mundo, só uma seleção é campeã e dá alegria à sua torcida, enquanto 31 sofrem. Lembro bem do que ouvi de um professor, ao falar sobre o verbo “torcer”: ele dizia que quem gosta de torcer é porque gosta de sofrer, porque, na realidade, o torcedor sofre mais do que goza o prazer de torcer. E a coisa chegou a tal ponto que a violência no futebol se torna alarmante. Mudaram o nome de “estádio” para “arena” dando, para muitos, a impressão de que ali deverá ser campo de gladiadores, assim como nas arenas romanas ou nas touradas espanholas. Portanto, falar de futebol como lazer é uma verdadeira discrepância da realidade.
E o carnaval? O tão decantado carnaval? Embora não se possa dizer que é um lazer propriamente dito, mas uma festa popular anual como tantas outras existentes em nosso extenso país, é impossível não ver nela mais sofrimento do que prazer. Os foliões se esbaldam nos blocos de rua sofrendo assaltos e todo tipo de violência; geralmente, as cadeias ficam cheias neste período. E não poderia ser de outra maneira, pois as pessoas estão promiscuamente juntas na rua, formado uma grande multidão, onde destaca-se a mistura de classes sociais, inebriadas pela música, pela dança e pelas bebidas. Para alguns é uma festa milionária, especialmente para trios, cantores e as prefeituras, mas, para outros é motivo até de falência financeira, pois ali se gastam as economias de alguns meses ou até mais. Aliás, é a festa que promove o maior êxodo de pessoas que fogem dela. Se um milhão vai a um carnaval numa de nossas capitais, mais de dois milhões saem da cidade e vão buscar um lugar sossegado, fugindo do barulho, da confusão e da violência. É isto a festa tão badalada em nosso país, ninguém o pode negar.
Mas, há coisa pior: a tão propalada “vida noturna”, toda ela infestada de divertimentos corruptores e imorais, geralmente em “nights clubs” ou boates do tipo “inferninhos”, onde rola de tudo, desde bebidas alcoólicas até drogas. Na realidade a tão propalada “vida noturna” deveria chamar-se “morte noturna”, pois ali se mata tanto o corpo quanto a alma. Se os governos proibissem tal comércio nas grandes cidades a violência urbana diminuiria de forma assustadora, pois a maior parte dos crimes se comete após o consumo de bebias alcoólicas e, em grande parte, nos ambientes de perdição noturnos.
Notemos que hoje prepondera muito também os eventos sociais, como festas de aniversários ou de formaturas. Não é muito diferente do que ocorria outrora, a não ser quanto aos bailes, hoje muito promíscuos e com músicas cada vez mais ensurdecedoras. Nestes bailes, todos são obrigados a suportar os terríveis decibéis alcançados pelo som alto, impedindo até mesmo que os comensais ou festejantes tenham uma conversa mais íntima. O ruído não deixa. As pessoas ficam esmagadas, humilhadas, verdadeiramente “soterradas” pelo turbilhão sonoro que lhes ataca de uma forma agressiva, causando às vezes, talvez em alguns, problemas de surdez incuráveis. Não há uma só festa de formatura, ou de casamento, seja lá o que for, onde não se encontre um destes “especialistas” nestes sons esquisitos e torturantes, verdadeiro massacre para quem tem bom senso.

Como eram as diversões de outrora

E como é que as pessoas se divertiam no passado? Quando usamos o termo “outrora”, ou mesmo “passado”, temos que precisar a época exata a fim de ficarmos bem situados no tempo. Pois, tais termos tanto podem se referir a cem como a mil anos atrás. Da mesma forma, vamos colocar a questão que tratamos agora mais no nosso Brasil do que em outros países, porque não eram as mesmas diversões que existiam em todos os países na mesma época que as que se praticavam por aqui. Sendo assim, não vamos tratar das diversões ou lazeres do século XX, embora até meados daquele século elas ainda eram um pouco parecidas com a do século anterior. E é exatamente nos séculos anteriores ao XIX que vamos buscar tais diversões a fim de compará-las com as atuais. E não é somente na Europa ou América, mas em nosso Brasil que vamos encontra-las.
Não precisa recuar muitos anos para analisar como eram sadios alguns divertimentos do passado. Basta relembrar o que preponderava ainda em meados do século passado. O lazer era algo que se praticava mais em família do que na rua, geralmente ao lado dos pais e dos filhos, estes com brincadeiras e diversões que os faziam cada vez mais próximos e amigos uns dos outros. Não havia computador, não havia TV, não tinha celulares com joguinhos virtuais (instrumentos que tornam a pessoa cada vez introvertida e autista, alheia ao mundo exterior); e assim procurava-se o divertimento com a própria criatividade de cada um, os meninos com suas bolas e carrinhos e as meninas com suas bonecas e casinhas. Abaixo, segue um texto elucidativo sobre o assunto, que trata exclusivamente sobre como se praticava o lazer no Brasil colonial:

“No Pequeno Elucidário de Palavras, de 1789, o padre Joaquim Viterbo ignorou o termo “lazer”. Do latim licere. Lazer significa “ser permitido”. A palavra expressava o estado no qual era permitido a qualquer um fazer qualquer coisa. Nos primeiros séculos da colônia, porém, o lazer era algo negociado nas brechas de uma existência provisória. O envolvimento de quase todos os atores sociais com a luta pela sobrevivência se somou ao convívio com uma massa de escravos, deixando pouco tempo para “qualquer um fazer qualquer coisa”. Além disso, o cristianismo zelava pela observância de preceitos, como o combate ao ócio. No mundo disperso em que viviam nossos avós, visitas eram sempre esperadas. As dos mascates, então, aguardadas ansiosamente. Com seus armarinhos às costas, eles batiam em todas as portas. No avarandado da casa desenrolavam tecidos diversos, exibiam fitas e rendas ou artigos de perfumaria, encantando sinhás e sinhazinhas com notícias da corte. Recebiam-se, também, as visitas de moradores da vizinhança. Mulheres sentavam-se pelo chão em esteiras e conversavam sobre remédios caseiros, conselhos matrimoniais ou receitas. Algumas trocavam presentes: galinhas gordas, rendas, um mimo de ovos. Durante a estação da colheita, gente das fazendas próximas vinha aos engenhos ajudar a catar frutas. Acompanhada de mucamas que levavam em cestas o farnel do almoço, o trabalho começava cedo. Quando o calor se tornava insuportável, estendiam-se esteiras no chão e os convivas se sentavam à volta da mesa improvisada. Danças depois das refeições permitiam alguma familiaridade entre rapazes e moças. Ao longo do dia não faltavam interrupções ou momentos em que lazer e gestos repetitivos se misturavam: nas fontes ou rios, onde se reuniam as lavadeiras; nos mercados da cidade ou nas atividades agrícolas noticiavam-se os acontecimentos, notadamente os escandalosos ou ridículos. Entre homens, “praticar a boa conversação” durante ou depois do trabalho, ou, entre mulheres, enquanto cosiam ou bordavam, era modo comum de entretenimento. Mexericar era, sim, uma forma de distração. E tão comum que havia mesmo uma lei, nas Ordenações Filipinas do século 17, que proibia o diz que diz. No livro V, lê-se: “Dos mexeriqueiros: Por se evitarem os inconvenientes que dos mexericos nascem, mandamos que se alguma pessoa disser à outra que outrem disse mal dele, haja a mesma pena, assim cível como crime que mereceria, se ele mesmo lhe dissesse aquelas palavras que diz que o outro terceiro dele disse, posto que queira provar que o outro o disse”. Outra prática que reunia pessoas, considerada “repugnante” pelos estrangeiros de passagem pelo Brasil, era o cafuné: “Catar ou fingir catação de piolhos e lêndeas é uso utilitário e processo prolongado de êxtase e preguiça”, explicou Luís da Câmara Cascudo. A vagarosa fricção era executada depois das refeições, sobre esteiras de piripiri ou nos alpendres. E de noite, quando mãos femininas pousavam nas cabeças de crianças e companheiros. A presença de baralhos, tabuleiros de xadrez e gamão nos inventários e testamentos confirma a vontade de reunir familiares ou amigos para se divertir. Jogava-se, e muito. Estavam na moda bilhar, dados, gamão. À volta das mesas – poucas – ou no chão, sobre esteiras, comum também era o jogo das pedrinhas, o Bato, vindo de Portugal. Usando seixos ou ossos, jogados ao ar até serem reunidos num montinho, era passatempo de adultos e crianças. Outro era a finca ou jogo do pião, que consista em aproximar o brinquedo de uma “casquinha” de louça ou madeira, pousada no solo. Ao final do dia, mulheres reuniam-se para “fiar ao serão”, tradição portuguesa que se valia do trabalho em torno das roças. Juntavam-se comadres para fiar juntas, cada qual fornecendo um pouco de azeite para a candeia. À volta do fogo, caçarola na trempe, a família se reunia. Os fatos do dia, lendas, contos e adivinhas eram aí desfiados. Aos homens, o emprego da viola era constante e “fazer uma dança” e “folgar” são verbos que aparecem em documentos. Nos sobrados urbanos ou nas fazendas, o entardecer era o momento em que mucamas e rapariguinhas ouviam à volta da mesa de costura ou nas lides da cozinha a senhora contar histórias da Bíblia. Na colônia, o lazer estava contaminado pelo mundo do trabalho, sinônimo de preguiça. No século 19, ele era descolado da casa e da família. A rua se tornou expressão de liberdade. Transformou-se no tempo de que se podia dispor, não mais dentro, mas fora do mundo cotidiano. Não mais aquele surrupiado em meio a tarefas domésticas e familiares, mas quase um direito. Passou, então, a ser sinônimo de distração, desperdiçado em descanso e em repouso”.
(Texto de Mary Priore, doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études em Sciences Sociales, – Extraído da revista “Aventuras na História”, edição de janeiro de 2014)

 O relato acima está incompleto, pois faltou inserir outras atividades que exerciam naquela época, não somente para combater o ócio, mas, especialmente, para se obter cultura e formação moral e religiosa. Havia também outros divertimentos como fazer cavalgadas, caçadas ou passeios pelas matas, muito salutares para a saúde do corpo e da alma. Na Bahia, no período em que o Brasil esteve sob domínio espanhol (1580 a 1640) havia até mesmo touradas. Mas, de modo geral, as famílias passavam o tempo com atividades educativas. Quando estavam todos reunidos em casa, tanto nos horários de trabalho quanto nos de ócio, havia sempre momentos dedicados à oração e ao ensino da Religião. E aí não participavam disso somente os membros da família, mas toda a criadagem e escravos. Nas famílias mais bem dotadas havia, inclusive, aulas de músicas e de artes em geral. A leitura era outro passatempo predileto, especialmente entre certas pessoas da alta sociedade. O maior perigo para as moças eram os romances (como as novelas de hoje), considerados corruptores dos costumes. Tivemos um exemplo numa carta, remetida da Europa, para onde estava de mudança, em que o médico baiano José Lino Coutinho dá algumas orientações e adverte sobre a educação de sua filha que aqui havia ficado: “A leitura de todos os romances amatórios, versos e música de semelhantes natureza e índole, lhe deve ser vedada, porque tais composições, pintando o amor com vivas e brilhantes cores, como origem inefável de gozos e prazeres, arroja o belo sexo em um pélago de infortúnios e desgraças; são estas terríveis obras que pintando o homem e o amante como um anjo e colocando a felicidade nos seus braços, perde a maior parte das mulheres quando, por assim dizer, seduzidas se entregarem todas ao amor, porque depois só encontram seres defeituosos e fracos que as abandonam, ou pelo menos, não correspondem ao justo a idéia de que deles haviam feito”.
Por razões como essas, eram os temas amorosos condenados pelos médicos, que os consideravam prejudiciais à saúde da mulher, podendo afetar-lhes o sistema nervoso. As próprias teses de doutorado dos alunos da Faculdade de Medicina da Bahia, que foram analisadas por Dinorah Castro , mostram que era muito comum eles apontarem a leitura de romances e contos de amor, as ideias poéticas, românticas e sentimentais como causa de desvios do comportamento feminino, como sejam a libertinagem, a fraqueza, a inconstância. Um desses autores considera inapropriada às mulheres a leitura de “quadrinhas, sonetos e muitas outras poesias eróticas, que prejudicando igualmente por arrebatá-las, impressionam de tal arte seu sistema nervoso, que tudo por diante será um Éden, um paraíso, um leito de rosas, um mar de amores”. Se assim procedessem não somente os pais, mas toda a sociedade moderna com relação às novelas, filmes, teatros e livros românticos, teríamos uma sociedade mais fiel aos princípios cristãos. De modo geral, a educação feminina (principalmente na classe social mais alta) daquele tempo, tanto na Europa ainda meio cristã quanto no Brasil era exemplar. E aqui estávamos apenas refletindo o espírito verdadeiramente cristão que a Igreja havia disseminado. E esta educação era facilmente transferida para toda a família. Era comum, por exemplo (e tal costume se fez notar até meados do século passado), que após as missas dominicais, as mães, os pais e os filhos, se fossem crianças, se reunirem depois, cada grupo com seus semelhantes, para a catequese. Haviam as “Filhas de Maria” (para as mães), os “Vicentinos” (para os pais) e as “Cruzadinhas” (para as crianças).
Nestas reuniões se praticava o melhor momento de lazer para a educação religiosa da família. Em 22 de maio de 1702, assumiu o cargo de Arcebispo da Bahia D. Sebastião Monteiro da Vide, insigne prelado português que trouxe para nossa pátria excelentes frutos para a formação moral e cultural de nosso povo. Foi ele responsável pela publicação da biografia de alguns místicos que se sobressaíam, como o ermitão de Bom Jesus da Lapa (a quem convenceu receber as ordens sacerdotais) e a freira reclusa do Convento do Desterro, Victória da Encarnação. Também foi de sua responsabilidade a publicação de um rigoroso levantamento das imagens milagrosas de Nossa Senhora que havia na Bahia. Procurou reformar o clero, moralizou a vida social e religiosa, dentre outras ações benéficas que legou. Além de Arcebispo da Bahia, Metropolitano no Estado do Brasil, do Conselho de sua Majestade, exercia também o cargo de Governador-Geral. Sua principal obra foi “As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, promulgadas em 1707, importante documento que norteou não só sua ação pastoral mas a própria educação moral, religiosa e cultural do nosso povo “para o bom governo do Arcebispado, direção dos costumes, extirpação dos vícios e abusos, moderação dos crimes, e reta administração da justiça", e estiveram em vigor até o final do século XIX. As referidas Constituições determinavam dentre outras coisas:
“Mandamos a todas as pessoas, assim Eclesiasticas, como seculares, ensinem, ou fação ensinar a Doutrina Christã á sua família, e especialmente a seus escravos, que são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza, mandando-os á Igreja, para que o Parocho lhes ensine os Artigos da Fé, para saberem bem crer; o Padre Nosso, e Ave Maria, para saberem bem pedir; os Mandamentos da Lei de Deos, e da Santa madre Igreja, e os peccados mortaes, para saberem bem obrar; as virtudes, para que as sigão; e os sete Sacramentos, para que dignamente os recebão, e com elles a graça que dão, e as orações da Doutrina Christã, para que sejão instruídos em tudo, o que importa a sua salvação. E encarregamos gravemente as consciências das sobreditas pessoas, para que assim o fação, attendendo à conta que de tudo darão á Deos nosso Senhor. E para que os Mestres dos meninos, e Mestras das meninas não faltem á obrigação do ensino da Doutrina Christã, mandamos a nossos Visitadores inquirão com grande cuidado, se elles fazem, o que devem, para que, sendo descuidados, sejão amoestados, e punidos, e lhes revogamos as licenças, que de Nós tiverem, sem as quaes não poderão ensinar".
 
Isso que o Bispo instituiu tornou-se logo um costume em todas as famílias cristãs no Brasil, fazendo com que as famílias aproveitassem em casa seus momentos de lazer para instruir e educar filhos, servos e escravos. No final do século XIX, mesmo as diversões mundanas eram de muito bom gosto, como a descrita a seguir.
Em 1882, um inglês pôde descrever um evento social da nobreza, uma partida na residência da herdeira imperial, da seguinte maneira: “Durante a música, somente as damas eram admitidas no salão que abrigava o piano, e os homens permaneciam no saguão e contemplavam o “fruit défendu” (as moças) sentadas ao longo das paredes do salão sem tapetes, revelando uma grande variedade de sapatos, pés e tornozelos. Sorvetes e refrescos eram servidos após o concerto, e então, [quando] uma banda “nigger” [sic] oculta em um corredor atacava uma quadrilha, rompiam-se as barreiras sociais, e as casacas negras invadiam o santuário. As quadrilhas eram dançadas em um tapete Aubusson, no salão oposto, bem como sobre o excelente assoalho do salão de concerto, e a banda, mesmo sem ter um maestro, não tocava mal [...] Havia um pequeno “buffet” com sanduíches e laranjada gelada, à la “Berkeley Street”, no corredor, e eu bebi um cálice de excelente vinho do porto à meia-noite, quando o imperador e a imperatriz se foram, e todos os convidados os seguiram em bloco”.

Nos Estados Unidos, o tônus aristocrático dos bailes de debutantes

“Estados Unidos: Nação aristocrática num Estado democrático” é o título do apêndice da edição americana do livro “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”, de Plínio Corrêa de Oliveira. Transcrevemos abaixo o trecho em que o Autor fala sobre os tradicionais bailes de debutantes daquele país, um costume que serve lá para mais caracterizar e solidificar as elites tradicionais. Este costume, que surgiu no século XVIII, foi copiado pelas sociedades de países ocidentais, em especial aqui no Brasil, embora não tenha sido dada a mesma ênfase aristocrática que vicejou nos Estados Unidos da América. Não se pode dizer que se constitui num lazer propriamente dito, pois não se trata de um divertimento cotidiano, sendo esporádico e temporário (como o carnaval e outras festas populares); mas podemos encarar as festas de debutantes como um prazer social elevado, embora somente desfrutado pelas pessoas das classes mais elevadas. Segue o texto:
“Atualmente encontram-se muito difundidas nos Estados Unidos as associações cujo objetivo principal é cultivar, entre seus membros, um estilo de vida aristocrático, próprio à classe alta, e assimilar as novas elites. Tais entidades cumprem assim uma importante função social dentro da classe mais elevada. Um lugar de destaque na vida social da classe alta norte-americana é ocupado por uma série de eventos, que conduzem anualmente ao baile das debutantes.
O ritual da debutante é um aspecto característico do longo e árduo processo que prepara as novas gerações para as exigências do estilo de vida da classe alta tradicional. O debut é apenas o passo final de uma longa caminhada, uma educação em etiqueta, comportamento e boas maneiras, que se inicia muito cedo, ainda na infância, e continua ao longo da vida da menina, da adolescente e da jovem, até que esta atinja a categoria de sub-debutante. Ele tornou-se a expressão de um elevado status social e de uma crescente tendência, em setores da alta classe norte-americana, para se organizar segundo o estilo da sociedade tradicional.
Em alguns bailes estabeleceu-se o hábito de convidar membros proeminentes da nobreza européia, para receber as debutantes na sociedade. William Domhoff explica: "A temporada das debutantes consiste numa série de festas, chás e bailes, culminando em um ou mais grandes bailes. Isto anuncia a entrada da jovem de classe alta na sociedade dos adultos, realizada com a máxima formalidade e elegância. São rituais dispendiosos, nos quais grande atenção é dispensada a cada detalhe da comida, da decoração e do entretenimento, e que têm uma longa história na classe alta. Tais bailes surgiram em Filadélfia, em 1748, e em Charleston, em 1762, e variam pouco de cidade a cidade em todo o país". (G. William Domhoff, Who Rules America Now, p. 32)
O baile das debutantes tornou-se assim uma das instituições típicas do estilo de vida da classe alta nos Estados Unidos. Ao descrever a função social desse baile, Digby Baltzell afirma que ele é "um rito de passagem, cuja função é introduzir a pós-adolescente no mundo adulto da classe alta, e assegurar a endogamia nesta classe como um padrão de comportamento". (Digby Baltzell, Philadelphia Gentlemen: Making of a National Upper Class, p. 60)
Certos bailes de debutantes também constituíam um critério para saber quem pertencia ao círculo social mais exclusivo e tradicional da classe alta norte-americana. "Para pertencer ao círculo social mais interno — diz Mary Cable, cronista da alta classe social norte-americana — a jovem devia ser convidada não apenas a todos os bailes de debutante, mas a um baile especial, realizado anualmente. Em Filadélfia, era o baile da Assembly, ao qual não se tinha esperança de ser convidado, a não ser que se pertencesse à elite de Filadélfia, com uma ancestralidade de duzentos anos. O St. Cecilia Ball, de Charleston, tinha uma exigência semelhante, e também uma rainha, escolhida cada ano entre as debutantes.... Receber tal honra trazia para a jovem um prestígio tão grande, que permanecia pelo resto da vida". (Mary Cable, Top Drawer American High Society From the Guilded Age to the Roaring Twenties - Mt. Pleasant, PL., Atheneum Books, 1984, p. 178).
Atualmente existem pelo menos 155 bailes de debutantes em 31 estados, "tendo por modelo os fabulosos bailes de Nova York, Filadélfia, Charleston e Baltimore. Para milhões de americanos, o debut significa a mais alta expressão do reconhecimento do status social. Hoje em dia a apresentação em um dos grandes bailes de debutantes tornou-se o critério pelo qual uma jovem é reconhecida como membro da sociedade. E esta aceitação abrange igualmente a sua família". (Lucy Kavaler, The Private World of High Society, pp. 131-132) Segundo os que escrevem sobre a vida social das elites tradicionais nos Estados Unidos, a "Sociedade de Santa Cecília", de Charleston, Carolina do Sul, é considerada como um bastião verdadeiramente aristocrático; e seu baile, o mais exclusivo de todo o país. Fundada em 1737 como uma associação musical — daí o seu nome — e dirigida exclusivamente por homens, é um clube que promove um baile anual, do qual só podem participar seus membros e convidados especiais. A sociedade procura manter um nível moral elevado em suas atividades. A maior parte das exigências para admissão de novos membros nunca foram publicadas; sabe-se, contudo, que para tal admissão se requer a aprovação de todos os demais. Atores e atrizes não são admitidos ao baile ou à sociedade, nem tampouco homens ou mulheres divorciados e recasados. A filha de um membro que não se casar com alguém pertencente à sociedade, poderá estar presente aos bailes, não porém seu marido e seus filhos. (Cfr. Stephen Birmingham, America’s Secret Aristocracy – Boston, Little, Brown, & Co., 1987, pp. 149-152)
No seu livro sobre a alta sociedade norte-americana, Cleveland Amory ressalta o espírito aristocrático desse baile: "Nessa sociedade o dinheiro não exerce qualquer papel social, salvo quando utilizado segundo o estilo de vida verdadeiramente aristocrático. As senhoras da Sociedade Santa Cecília possuem um vestido especial para os bailes da associação, que usam orgulhosamente durante toda a vida. Os cavalheiros sem recursos para custear o traje a rigor, com gravata branca, podem assistir ao baile envergando terno azul-marinho ou preto, com gravata borboleta. Isto se prende a uma tradição. "Quanto ao próprio baile, as regras são estritas: as danças de todas as participantes são marcadas de antemão, e somente se tocam valsas e foxtrotes lentos". (Cleveland Amory, Who Killed Society? - New York, Harper and Row, 1960, p. 91)
A associação jamais permitiu que a mídia estivesse presente em qualquer de suas atividades sociais. "The Philadelphia Assembly", fundada em 1748, também promove um dos bailes mais antigos e aristocráticos dos EUA, comparável em prestígio ao da Sociedade Santa Cecília. É uma instituição marcadamente tradicional, e inclui o creme da alta sociedade de Filadélfia. Sobre seu baile anual, o historiador Nathaniel Burt declara: "‘The Philadelphia Assembly’ ainda é, provavelmente o mais prestigioso dos acontecimentos sociais norte-americanos". E acrescenta: "A admissão é estritamente hereditária, segundo a linha masculina. Filhos e filhas dos membros podem participar do baile, embora não automaticamente, quando atingem a idade adequada. Se uma filha de um dos membros casa-se com alguém que não pertença à entidade, ela não pode mais participar do baile, enquanto um homem da Assembly pode casar-se com quem desejar, sem deixar por isto de pertencer aos seus quadros". (Nathaniel Burt, The Perennial Philadelphians, pp. 95, 278) Nos bailes que a entidade promove, continuam a ser observadas tradições que, muitas vezes, têm duzentos anos de existência, como por exemplo a de erguer um brinde a George Washington, em cuja honra foi realizada a "Assembly" em 1793. Homens e mulheres divorciados não podem participar dos bailes, um costume que continua a ser mantido apesar das dificuldades que hoje isto acarreta. Embora a "Assembly" seja, em princípio, hereditária, ela renova seus quadros por meio de casamentos entre os membros das famílias tradicionais que a ela pertencem e os membros das novas elites.
Em Baltimore, logo após a guerra de 1812, em pleno apogeu das grandes famílias patrícias de Maryland, surgiu o "Bachelors Cotillion", dirigido por homens da sociedade mais tradicional da cidade. E ainda hoje tal associação constitui um dos exemplos mais notáveis da existência de sociedades aristocráticas nos Estados Unidos. O "Bachelors Cotillion" orgulha-se de estar entre os mais antigos bailes de debutantes do país. Reunindo as famílias tradicionais de Baltimore em um dos mais importantes eventos sociais aristocráticos, é também modelo para Cotillions similares em outras cidades e estados. Em Nova York as famílias mais tradicionais (Old Families) continuam a ter uma vida social própria e exclusiva, na qual suas filhas fazem o seu debut. Ainda na classe alta, porém em nível menos elevado, existem bailes-chave para os diversos status sociais, formando uma pirâmide em cujo ápice estão aqueles eventos sociais quase exclusivos das "Old Families". O "New York Junior Assembly" é o baile de maior prestígio fora dos bailes particulares das famílias mais tradicionais de Nova York. Nas palavras de Lucy Kavaler, "a vida de debutante em Nova York serve como modelo para tais atividades em todo o país.... Os bailes mais procurados e disputados são os ‘Junior Assemblies’, que tiveram início há mais de 50 anos. Qualquer jovem que seja convidada a participar, entra automaticamente no círculo mais exclusivo da sociedade". (Lucy Kavaler, The Private World of High Society, p. 135)
Em Nova York, além das famílias tradicionais da "Velha Guarda", que mantêm seus próprios e exclusivos bailes para a apresentação de debutantes, algumas das associações patrióticas e hereditárias, tais como a "Sociedade de São Nicolau" e a "Sociedade dos Descendentes do Mayflower", apresentam as filhas de seus membros em bailes e jantares anuais. Bailes promovidos por associações similares de vários tipos, que se movimentam em torno das elites tradicionais de cada região, marcam a vida social de muitos centros do país, como Nova Orleans, Boston, St. Louis, San Francisco, Los Angeles, Chicago, etc. Os que mencionamos são os mais antigos e conhecidos, tomados como modelos para os outros; os quais, cada um em seu local, desempenham a mesma função social e conferem aos seus participantes diferentes graus de prestígio, de acordo com as circunstâncias de cada local e de cada baile”.

Os salões da França do século XVIII

E não havia melhor lazer do que a conversa em sociedade, verdadeira arte que era cultivada especialmente no decorrer do “Ancien Regime”, atingindo o mais elevado grau nos salões franceses do século XVIII. Tratava-se de um local convenientemente preparado para reuniões sociais, geralmente em casa de alguma dama ilustre e hábil em conduzir as conversas dos convidados. Note-se que elas abriam os salões de suas casas para aquelas reuniões rotineiras sem almejar qualquer vantagem pessoal, mas apenas pelo prazer de ter em sua casa a conversa tão agradável daquelas figuras que convidava. Ou às vezes nem convidava, pois elas apareciam sem ser chamadas... E a madame cobria todos os gastos com a reunião, que não eram pequenos. Que eram os salões e como surgiram? Inicialmente se constituíam em meros círculos informais, formados por apreciadores da bela linguagem, das boas maneiras, dos ditos de espírito. Aos poucos foram paulatinamente se transformando em núcleos de solidificação e preparação das idéias revolucionárias, a tal ponto que, a partir de meados do século XVIII, eles puderam ser qualificados por diversos historiadores de "laboratórios de opinião pública", "centro de propaganda filosófica", "antecâmaras do poder" e outras expressões do gênero. Estavam eles, pois, em condições de desempenhar papel relevante na preparação da opinião pública para a Revolução Francesa. Embora não tenha sido este o objeto primordial ao se formarem, pois poderiam também ter tido papel preponderante na formação de uma opinião pública contrária à Revolução, a depender dos formadores da referida opinião que os freqüentavam. Os salões franceses eram freqüentados por todo tipo de gente: filósofos, artistas, escritores, políticos, diplomatas, burgueses e até plebeus. Eram reuniões inesgotáveis em conversas, em “plaisanteries” de toda espécie, mas temperadas sempre pelo senso apurado do bom tom e das conveniências. Por seu talento, categoria e urbanidade, os salões com suas conversas eram o centro de Paris e faziam dela a capital do mundo. Abaixo enumeramos os mais famosos e suas proprietárias.
Mme. de Lambert (1647-1733) - "Em 1710 - relata Picard - abre seu salão Mme. Lambert. Mulher do século XVII por seu nascimento, sua educação e seus costumes, (...) era do século XVIII pela orientação de seu pensamento e pela liberdade de seus julgamentos (...) "Ela abria a porta para a livre crítica das idéias filosóficas, políticas e religiosas. Mme. de Lambert foi uma das primeiras mulheres filósofas. Sem ser propriamente um "espírito forte", ela não tem mais a devoção perfeitamente conformista do século XVII. Ela fala da religião sem fé profunda, mas com decência. Eminentes prelados, como Fénelon, freqüentavam seu salão sem apreensão e, como escreve d'Argenson, "sua casa fazia honra a todos aqueles que eram aí admitidos. Ela recebia, outrossim, o Pe. Choisy e o Pe. Chaulieu, (...) ambos epicuristas e libertinos.
Mme. de Tencin (1685-1749) - "Quando Mme. de Lambert morreu - comenta Calvet -, os escritores acostumados a se reunirem em seu salão passaram para o de Mme. de Tencin. Esta mulher pouco recomendável conseguiu, à força de habilidade e de espírito, governar um salão brilhante e poderoso, onde eram vistos com freqüência Fontenelle, Marivaux, o padre de Saint-Pierre, Montesquieu, e onde estrangeiros ilustres vinham tomar contato com Paris. "Toda dada à intriga, liberada de qualquer escrúpulo, Mme. de Tencin encorajava as idéias novas que se elaboravam devagar, sem todavia aparecerem claramente. "Neste salão - assinalam os Goncourt -, o primeiro na França onde o homem era recebido com atenções proporcionadas não à sua categoria social, mas à sua inteligência, os escritores iniciaram o grande papel que teriam no mundo daquele tempo. Foi de lá, da casa de Mme. de Tencin, que eles se espalharam pelos salões e chegaram, pouco a pouco, a dominar a sociedade. Domínio este que lhes valeu, ao fim do século, um lugar tão proeminente no Estado".
Mme. Geoffrin (1699-1777) - "Segundo Calvet, "formada por Mme. de Temcin, Geoffrin recolheu a herança de seu salão e, a partir de 1748, reuniu em sua casa todos os escritores que pertenciam ao partido dos filósofos. Ela dava dois jantares por semana: o de segunda-feira para os artistas (Vanloo, Vernet, Bouchet, La Tour, Lagrenée, Soufflot), e o de quarta-feira para os escritores (d'Alembert, Marmontel, Morellet, Helvétius, Raynal, Thomas, Grimm, d'Holbach). Ela tornou-se assim a patrona da "filosofia". Exercia uma autoridade indiscutível. Seu salão era administrado como uma instituição; ela vestia, alimentava, dirigia, repreendia os filósofos. Muito sensata e com um fundo de vaga religiosidade, ela os controlava em suas audácias, evitando-lhes assim os excessos comprometedores. O salão de Mme. Geoffrin foi, durante vinte anos, o centro de difusão mais ativo das idéias novas. "Escrevem os Goncourt, segundo os quais o salão de Mme. Geoffrin era o salão da Enciclopédia: "Viu-se, pela acolhida dada à literatura, um salão burguês, elevando-se ao primeiro posto entre os salões de Paris, transformar-se em um centro de inteligência, em um tribunal do bom gosto, onde a Europa vinha receber a palavra de ordem e de onde o mundo inteiro recebia a moda". O pintor Lemonnier representou uma cena de uma das reuniões no salão de Mme. Geofrin, com o título de “Uma Leitura de D’Alembert no Salão de Madame”. D’Alembert lia a Enciclopédia, e o fato a que se refere o quadro foi a polêmica despertada pelos jesuítas contra a Enciclopédia, objeto de uma instrução pastoral que foi muito criticada pelos revolucionários .
Mme. du Deffand (I697-1780) - Como assinala Calvet, 'muito diferente de Mme. Geoffrin era Mme. du Deffand. Dotada de um espírito ousado, sem escrúpulos, sem princípios, sem pudor, sem ilusões de nenhuma espécie, ela foi sempre uma vanguardeira no século, por sua ousadia. (...) "Escritores, grandes senhores e estrangeiros disputavam seu salão, que exercia por isso mesmo uma grande influência. Ficando cega, tomou por leitora Mlle. de Lespinasse, que em breve separou-se dela e fundou seu próprio salão".
Mlle. de Lespinasse (1732-1776) - Quando Mme. Geoffrin, envelhecida, não exercia mais um império tão absoluto - continua Calvet -, era em casa de Mlle. de Lespinasse que os filósofos, sob o comando de d'Alembert, se reuniam. "Segundo os Goncourt, "o salão de Mlle. de Lespinasse não conhecia nenhum constrangimento nem restrição: ali os temperamentos eram livres, as personalidades tinham o direito de serem francas. Nenhuma questão era reservada: religião, filosofia, moral, contos, novelas, quaisquer maledicências - tocava-se em tudo. (...) "O salão de Mme. Geoffrin era o salão oficial da Enciclopédia; o de Mlle. Lespinasse era o parlatório familiar, o toucador e o laboratório. Era lá que se trabalhava para o sucesso do partido, que se redigiam os elogios, que se ditavam as opiniões do dia para a passarem à posteridade, que se engrandecia o despotismo filosófico sob o qual d'Alembert chegou a dominar a Academia. "Quantos cargos importantes distribuídos neste salão! Quantos grandes homens eram ali fabricados, quanta celebridade era lá conferida, pela paixão de uma mulher! "Calvet observa que "aqui, nós assistimos a uma transformação do espírito filosófico: Rousseau fez sua entrada, e o coração retomou seus direitos. Orgulhava-se de ser sensível e enternecer-se. Em lugar de demolir as instituições do passado pelo riso sarcástico, os filósofos se dedicariam doravante a combatê-las em nome da humanidade, com enternecimento na voz. Essa nova campanha que se organizou no salão de Mlle. de Lespinasse teve um grande sucesso. (...) "Ao lado desses salões - prossegue Calvet -, que exerciam uma verdadeira autoridade, é preciso nomear outros salões mais livres, onde todos se divertiam sem constrangimentos, e onde se ia até o fim nos paradoxos mais irreverentes; os salões dos Coletores de Impostos: d'Epinay, La Popelinière, etc; os salões das atrizes: Mlle. Quinault, Mlle. Guimart; os círculos dos filósofos: Helvétius, d'Holbach".
Madame de Staël – Anne-Louise-Germaine Necker, transformada na Baronesa de Staël-Holstein, é também conhecida como uma das primeiras filósofas políticas dos tempos modernos. Foi escritora, poeta e ativista política em plena efervescência da Revolução Francesa e da era napoleônica e da restauração da monarquia dos Bourbons. Teve papel importante na corrente de livres-pensadores, especialmente nos chamados “moderados”. Natural de Paris, onde nasceu a 22 de abril de 1766, era filha de Jacques Necker, que foi por três vezes ministro das finanças no reinado de Luís XVI. Apesar de não ser católico nem francês, o rei nomeou-o por submissão à influência dos livres-pensadores do salão de Madame Necker, sua mãe, a escritora suíça Suzanne Curchod, filha de pastor calvinista e ativista, depois Madame Suzanne Necker. Fundara seu salão em Paris, uma verdadeira escola para a filha, Madame de Staël, além de ter servido de suporte para o marido ser alçado ao posto de ministro. Às sextas-feiras, Madame Necker reunia em sua residência, o “Hotel Leblanc”, grupos de livre-pensadores moderados e da nobreza parisiense, onde havia debates de natureza política e social. “Hotel” era o nome dado a edifícios públicos ou grandes mansões parisienses. O de Madame Necker estava situado na “Chausée d’Antin”, conhecido como o centro da moda parisiense de então, pois ficava próximo de teatros e das grandes avenidas. Aristocratas, nobres, empresários e comerciantes ricos residiam pelas redondezas, sendo-lhes fácil freqüentar seu salão. O salão de Madame Necker era freqüentado por expoentes do pensamento revolucionário: protestantes calvinistas, os denominados “espíritos abertos” ou livres-pensadores, “tolerantes”, liberais em política e, principalmente, em assuntos religiosos. Para lá iam figuras como Mirabeau (um dos redatores da “Declaração dos Direitos do Homem”), Denis Diderot, Georges Louis Leclerc (conde de Buffon), Gabriel de Mably (conhecido como Abbé de Mably), precursor do “socialismo comunitário” e Jean le Rond d’Alembert, além de vários correligionários calvinistas vindos da suíça. Houve também, entre ela e o ímpio Voltaire, volumosa correspondência. Madame de Staël acostumou-se desde criança a intervir nos debates do salão de sua mãe com a maior naturalidade, tornando-se ela também uma filósofa revolucionária bem afinada com a moda. Após seu casamento, Anne-Louise Germaine Necker, agora com o título de Madame ou Baronesa de Staël, abre também um salão em sua residência, situado na Rue du Bac. Muitos de seus freqüentadores haviam defendido idéias libertárias e até lutado por elas, como foi o caso de La Fayette, Noailles, Clermont-Tonnerre, ou escritores como Condorcet, Narbonne, Talleyrand, etc. Para alimentar as conversas de seus clientes publica no primeiro ano um livro “Sophie ou Les Sentiments secrets” e uma bajulação dos pensamentos de Rousseau, que era moda em todos os salões parisienses. O pai de Madame Staël foi demitido do cargo em 1787, mas ela soube manobrar as figuras que freqüentavam seu salão de maneira que o mesmo voltasse ao cargo no ano seguinte. A mesma influência parece ter sido usada para que Narbonne (seu segundo marido ou um de seus vários amantes) fosse nomeado, em 1791, ministro da guerra. Assim, seu salão não servia somente para propagar os ideais da Revolução mas também para influenciar os políticos e colocar pessoas em postos importantes para os seus desígnios. Foi lá no seu salão também que se tramou um recuo dos ideais revolucionários e se passou a defender idéias moderadas. Chegou até a esconder condenados à guilhotina em sua residência. O motivo desta mudança, principalmente, foi por causa dos excessos praticados no período do terror, em 1792. Começou-se então a se propagar uma saída “honrosa” para a monarquia francesa, que era o modelo inglês, ou seja, uma monarquia constitucional. Tais ideais são atacados tantos pelos monarquistas legalistas quanto pelos republicados. Dir-se-ia que ela e seus correligionários estavam entre dois fogos. Considerados moderados, oferecem (ela, Narbonne e Malouet) um plano de fuga para a família real, inteiramente frustrado por ter sido elaborado, como se vê, por gente suspeita. Madame de Staël chegou a ser presa e levada ao Conselho Comunal para ser julgada e guilhotinada, mas foi salva por um escritor revolucionário Louis Pierre Manuel, que era também Procurador da Comuna de Paris. Consta que Luis Pierre teria argumentado a Robespierre que ela estaria grávida, e por isso foi autorizada sua libertação. No dia seguinte foge para a Suíça, onde abriu seu salão na vila de Coppet. Viveu, neste período, pouco tempo no exílio. Fez um périplo por vários países, encontrando-se com figuras revolucionárias como Benjamin Constant (um de seus amantes), e publicou obras de caráter liberal, principalmente na linha moral e do “feminismo” então emergente. A partir de 1797, iniciando-se o período napoleônico, Madame de Staël volta a Paris e tenta reabrir outro salão, desta vez em nova residência. No entanto, os tempos são outros, e não há mais freqüência de gente tão refinada como as do salão de sua mãe ou da Rue du Bac. Mas sua produção literária continua. Visita com freqüência filósofos revolucionários e racionalistas como Goethe e Schiller, tentando também influenciar nos acontecimentos políticos de então. Com o novo exílio decretado por Napoleão, inicia novo périplo pela Europa, visitando personalidades importantes como a rainha Carolina ou escritores de renome, publicando obras de cunho revolucionário. Chega a comemorar dez anos de exílio com um livro. Mas facilitaram sua “fuga”, da Suíça (dominada por Napoleão) para a Inglaterra. Seu “salão” agora é o mundo e não apenas Paris, tudo o que é novidade tem sua adesão, tornando-se admiradora de Kant e do filosofismo cético. A filósofa, anticlerical, liberal, racionalista quase atéia e desesperada, publica em 1813 um livro que faz a apologia do suicídio: “Réflexions sur le suicide” além de um comentário sobre a Revolução Francesa “Considerations sur Ia Révolution française”. Após a queda de Napoleão volta a Paris em 1815 e defende a restauração da monarquia. Morre dois anos depois, em 1817, no mesmo dia da tomada da Bastilha.