quarta-feira, 17 de abril de 2013

O nosso jeitinho



Tem havido muita discussão sobre o “jeitinho”, especialmente o que se tornou comum chamar de “jeitinho brasileiro”. Isso porque supõe-se que tal modo de proceder seja uma característica muito especial de nosso povo. Em tudo o que se vai fazer, aqui no Brasil, havendo qualquer dificuldade a transpor, a pessoa sempre apela para a frase “Dá um jeitinho aí!...”  E isso ocorre por aqui cotidianamente, tanto nas relações comuns do dia a dia, nas atividades comerciais ou sociais, quanto nas complicações jurídicas ou de qualquer outra natureza. O “jeitinho” tornou-se uma fórmula de resolver problemas fora das situações normais, através de uma solução que não seja a legal ou convencional.

Pelo fato disso ter se disseminado de forma indiscriminada no Brasil, a saída para o “jeitinho” encontrou lugar até na política e na economia. As empresas, as entidades financeiras, os economistas e até as autoridades do governo sempre acham um “jeitinho” para encobrir situações vexatórias ou algumas dificuldades perante o grande público. Se alguma empresa ou banco  vai apresentar prejuízo, os diretores têm que arranjar um “jeitinho” para que tal não ocorra; se um ministério está passando por dificuldades, às vezes problemas de corrupções e escândalos, tem-se que arranjar um “jeitinho” para a coisa ficar encoberta. Se os políticos que estão no poder aproveitam-se do cargo e roubam, são aconselhados pelas autoridades que dêem um “jeitinho” para que a coisa se resolva de forma encoberta para que o nome e o prestígio do Governo não fique comprometido. Talvez tenha sido por isso que houve o famoso caso do “mensalão”, quando dezenas de políticos foram pegos em contravenções escandalosas, mas o Governo tentou a todo custo encobrir tudo. Aqui o “jeitinho” se confunde com esperteza.

E chegou ao ponto das próprias autoridades econômicas serem criticadas no exterior por procurarem sempre arranjar o tal “jeitinho” para encobrir as mancadas e falhas do nosso sistema político-econômico. O nosso ministro da fazenda chegou a ser chamado pela mídia americana de “profissional do jeitinho” (lá a expressão usada é “little way” – pequeno jeito), haja vista que o mesmo teria feito várias manobras contábeis com o Tesouro Nacional com vistas a justificar o cumprimento das metas fiscais programadas pelo Governo. A manobra foi facilmente descoberta pelos economistas, e o “jeitinho” foi denunciado como prática normal por aqui.

Mas, afinal, como caracterizar uma situação em que o uso do “jeitinho” seja lícito e até aconselhável?

Segundo alguns historiadores, essa quase mania de tudo se resolver com um “jeitinho” não nasceu aqui entre nós, mas seria uma herança de nossos bons colonizadores. E a fórmula do “jeitinho” já era muito usada em Portugal desde os tempos do Rei Dom João I (séc. XIV), mas não teria sido ele o principal responsável, e não teria sido nenhum português, mas uma inglesa, a rainha Dona Filipa de Lencastre. Numa época rigorosa, em que tudo se fazia com disciplina e rigor, era necessária alguma fórmula caridosa de amortecer as tensões sociais, e isso a rainha o fazia através do “jeitinho” muito peculiar de seu sexo e de sua religiosidade, repetida pelos filhos e nobres da corte, logo se disseminando pela população e sendo transposta para o Brasil.

Este “jeitinho” português que a rainha tão bem praticava de modo correto era fruto da bondade, virtude muito peculiar entre cristãos, e que procura sempre tentar amenizar o sofrimento do próximo. Não é bem assim que pensa alguns povos que sofreram muito fortemente os efeitos do humanismo e da Renascença, para os quais as regras existem para serem aplicadas com rigor..

Dessa forma, podemos caracterizar algumas situações em que o uso do “jeitinho” pode ser lícito e até aconselhável, e outras em que as pessoas o usam mais como esperteza para ludibriar e se sair de enrascadas. A maioria dos “jeitinhos” lícitos são decorrentes do excesso da burocracia, onde há uma infinidade de exigências com papéis, muitas delas absurdas e sem sentido.Por exemplo, se você vai se matricular numa escola e, entre os papéis, há um que o funcionário quer devolver porque não é uma cópia perfeita, ou por outro motivo, não custa nada apelar para o “jeitinho” pedindo, por exemplo, que o funcionário aceite aquele papel sob a promessa de vir depois trazer outro na forma exigida. Mas há os casos em que o “jeitinho” pode se consumar numa ação criminosa, como pedir a um policial para “deixar passar” alguma infração grave (às vezes sob promessa de propinas) e os citados acima nos casos de situações econômicas complicadas.

Segundo reportagem da revista “Língua Portuguesa” (edição 89, de 2013), o lingüista John Robert Schmitz (seria brasileiro com esse nome?), da Unicamp, afirma que “jeito” deriva do verbo “jacere” – jacio, jacere, jeci, jactum (lançar, arremessar), “objeto” ou “objeção” (o que está diante) e “sujeito” (por baixo). Lançar para fora (e, ex) é “ejetar”; para dentro é “injetar”. Temos “rejeição” àquilo que deve ser jogado fora (abjeto)..., etc.” Segundo a revista, “o jeitinho seria a extensão dessa idéia corporal para o âmbito das relações sociais”. A mesma revista expõe ainda a opinião de um filósofo, segundo o qual o jeitinho é uma predisposição em ser cooperativo. E concluía que o “jeitinho” não se confundiria com favorecimento ou privilégio, o que acho razoável.

O europeu se espanta com o nosso “jeitinho” porque se tornou um homem empírico, apegado demais a convenções e hábitos, tido como lógico e racional, mas, no fundo, apenas apegado às regras. Os fariseus do tempo de Nosso Senhor Jesus Cristo também eram assim e foram recriminados por nosso Salvador. Talvez o europeu de hoje não seja exatamente igual ao fariseu, mas que tem muita coisa parecida com eles, isso tem. Lembremos que foi de lá que se originou o lema “é proibido proibir”, e de dentro da universidade mais famosa. Um amigo meu, que residia na Europa, certa feita disse-me que nenhum francês recebe visita em sua casa se não for com hora marcada. O mesmo ocorre com os ingleses, alemães, com as honrosas exceções de Espanha e Portugal, embora nestes dois países ainda exista também muito apego às regras. Se um brasileiro, amigo de um francês, ligar para ele dizendo que vai lhe fazer uma visita exatamente na hora do almoço, ao ser negado, certamente será tentado a dizer: “dá um jeitinho aí, pois viajo hoje mesmo”. Mesmo assim, o francês dificilmente mudará de atitude, a não ser que tenha já convivido algum tempo no Brasil e tenha aprendido a usar esta bela fórmula social, a do “jeitinho” de se viver em sociedade.

Em suma, eles lá não são “honestos” porque o preceitua dois Mandamentos da Lei de Deus (o 7° e o 10°), mas por causa de um hábito, um costume que eles seguem há anos. E o importante, para eles, é seguir as regras. É a maneira “cartesiana” de viver, diferente da nossa, mais flexível, mais agradável e versátil, sabendo fazer “jogo de cintura”, como se diz aqui, e contornando situações sem causar maiores males sociais.

terça-feira, 9 de abril de 2013

O VERDADEIRO SENTIDO DE BONDADE



Talvez não se tenha certeza, a estas alturas da situação moral de nosso povo, se permanece ainda no coração do povo brasileiro aquela bondade tão famosa em tempos idos. Para uma análise, seria interessante ver qual o verdadeiro sentido de "bom coração" ou de bondade. Para tanto, expomos abaixo um artigo do Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre o tema:
 
 
“Uma deformação romântica da caridade: “o bom coração”.

 

Odiar é pecado? Sim, não? Por que? Se alguém se encarregasse de fazer entre os nossos católicos um inquérito a este respeito, recolheria respostas muito curiosas, revelando em geral uma pavorosa confusão de idéias, um ilogismo fundamental.

Para muita gente, ainda intoxicada por restos do romantismo herdado do século XIX, o ódio não é apenas um pecado, mas o pecado por excelência. A definição romântica do homem mau é o que tem ódio no coração. A contrário sensu, a virtude por excelência é a bondade, e por isto todos os pecados têm sua atenuante se cometidos por uma pessoa de "bom coração". É freqüente ouvirem-se frases como esta: "pobre X, teve a fraqueza de se ‘casar’ no Uruguai, mas no fundo é muito boa pessoa, tem ótimo coração". Ou então: "pobre Y, deixou roubar em sua repartição, mas foi por excesso de bondade: ele não sabe dizer não, a ninguém".

O que vem a ser "um bom coração"? Evidentemente, começa por não ser um coração propriamente dito, mas um estado de espírito. Tem "bom coração" quem experimenta em si, muito vivamente, o que sofrem os outros. E que, por isto mesmo, nunca faz sofrer a ninguém. É por "bom coração" que uma pessoa pode deixar sistematicamente impunes as más ações de seus filhos, permitir que a anarquia invada a aula em que leciona, ou os operários que dirige. Uma reprimenda faria sofrer, e a isto não se resolve o homem de "bom coração", que sofre ele mesmo demais, em fazer os outros sofrer. O "bom coração" sacrifica tudo a este objetivo essencial, de poupar sofrimento. Se vê alguém queixar-se do rigor do Decálogo, pensa imediatamente em reformas, abrandamentos, interpretações acomodatícias. Se vê alguém sofrer de inveja por não ser nobre, ou milionário, pensa logo em democratização. Juiz, sua "bondade" o levará a sofismar com a lei para deixar impunes certos crimes. Delegado, fechará os olhos a fatos que seu dever funcional lhe imporia que reprimisse. Diretor de prisão, quererá tratar o sentenciado como uma vítima inocente dos defeitos da época e do ambiente; e, em conseqüência, instaurará um regime penal que transformará a casa de correção em ponto de encontro de todos os vícios, em que a livre comunicação entre sentenciados exporá cada um ao contágio de todos os vírus que ainda não tem. Professor, aprovará sonolenta e bonacheironamente alunos que no máximo mereceriam 2 ou 3. Legislador, será sistematicamente propenso a todas as reduções de horas de trabalho, e a todos os aumentos de salário. Na política internacional, será a favor de todos os "Munique" de todas as capitulações imprevidentes, preguiçosas, imediatistas desde que sem dispêndio de energia salvem a paz por mais alguns dias.

Subjacente a todas estas atitudes, está a idéia de que no mundo só há um mal, que é a dor física ou moral: em conseqüência, bem é tudo quanto tende a evitar ou a suprimir sofrimento, e mal é o que tende produzi-lo ou agrava-lo. O "bom coração" tem uma forma especial de sensibilidade, pela qual se emociona à vista de qualquer sofrimento, e defende todo e qualquer indivíduo que sofre, como se ele fosse vítima de uma injusta agressão. Dentro desta concepção, "amar ao próximo" é não querer que ele sofra. Fazer sofrer o próximo é sempre e necessariamente ter-lhe ódio.

Daí advém para o homem de "bom coração" uma psicologia muito especial. Todos os que têm zelo pela ordem, pela hierarquia, pela integridade dos princípios, pela defesa dos bons contra as investidas do mal, são desalmados, pois "fazem sofrer" com sua energia os "pobres coitados" que "tiveram a fraqueza" de cair em algum deslize.

E se em relação a todos os pecadores da terra o homem de "bom coração" tem tolerância, é muito explicável que odeie o homem de "mau coração" que "faz sofrer os outros".

Estas são as linhas gerais em que se pode sintetizar um estado de espírito muito freqüente. Claro está que apontamos um caso em tese. Graças a Deus, só um número relativamente pequeno de pessoas é que em todos os campos chega a estes extremos. Mas é freqüente encontrar gente que em diversos pontos age inteiramente assim.

E constituem multidão aqueles em que se encontram pelo menos laivos deste estado de espírito.

Ainda aqui, alguns exemplos são esclarecedores. Para mostrar quanto este mal está entranhado no brasileiro, escolhamos esses exemplos em maneiras de falar e de sentir comuns entre católicos.

Para que se entenda bem o que há de errado nos exemplos que vamos dar, comecemos por lembrar rapidamente qual é neste assunto a autêntica doutrina católica.

Para a Igreja, o grande mal neste mundo não é o sofrimento, mas o pecado. E o grande bem não consiste em ter boa saúde, mesa farta, sono tranqüilo, em gozar honras, em trabalhar pouco, mas em fazer a vontade de Deus. O sofrimento é certamente um mal. Mas este mal pode em muitos casos transformar-se em bem, em meio de expiação, de formação, de progresso espiritual. A Igreja é Mãe, a mais terna, a mais solícita, a mais carinhosa das mães. Dela se pode dizer, como de Nossa Senhora, que é Mater Amabilis, Mater Admirabilis, Mater Misericordiae. Assim, ela procurou sempre, procura hoje, até o fim dos séculos procurará quanto possa afastar de seus filhos, e de todos os homens, qualquer dor inútil. Mas nunca deixará de lhes impor a dor, na medida em que a glória de Deus e a salvação das almas o peçam. Ela exigiu dos mártires de todos os séculos que aceitassem os tormentos mais atrozes, ela pediu aos cruzados que abandonassem o conforto do lar para arrostar mil fadigas, combates sem conta, a própria morte em terra estranha. E ainda em nossos dias ela pede aos missionários que se exponham a todos os riscos, a todas as fadigas, nos rincões mais inóspitos e longínquos. A todos os fiéis, pede ela uma luta incessante contra as paixões, um esforço interior contínuo para reprimir tudo quanto é mau. Ora, tudo isto supõe sofrimentos de tal monta, que a Igreja os considera insuportáveis para a fraqueza humana, a ponto de ensinar que, sem a graça de Deus, ninguém pode praticar na sua totalidade, e duravelmente, os Mandamentos.

Todos estes sofrimentos, a Igreja os impõe com prudência e bondade, é certo, mas sem vacilação, nem remorso, nem fraqueza. E isto, não apesar de ser boa mãe, mas precisamente porque o é. A mãe que sentisse remorso, vacilasse, fraquejasse ao obrigar seu filho a estudar, a se submeter a tratamentos médicos penosos mas necessários, a aceitar punições merecidas, não seria boa mãe.

 Este procedimento, a Igreja o espera também de seus filhos, não só em relação a si mesmos, mas ao próximo. É justo que nos dispensemos de dores inúteis e evitáveis. Devemos ter para com o próximo entranhas de misericórdia, condoendo-nos com seus padecimentos, e não poupando esforços para os aliviar. Entretanto, devemos amar a mortificação, devemos castigar corajosamente nosso corpo e, principalmente, combater com afinco, clarividência, meticulosidade os defeitos de nossa alma. E como o amor do próximo nos leva a desejar para ele o mesmo que para nós, não devemos hesitar em fazê-lo sofrer, desde que necessário para sua santificação.

* * *

Ora, na aplicação destes princípios é fácil apontar muitos desvios ocasionados pela concepção romântica do "bom coração".

É "bom coração" ter certa condescendência para com formas veladas de divórcio, por pena dos cônjuges, ser pela abolição dos votos religiosos e do celibato sacerdotal, por pena das pessoas consagradas a Deus, considerar com laxismo os problemas ligados à limitação da prole por pena da mãe, etc. Em outros campos, o "bom coração" consiste em ser contra as polêmicas ainda que justas e temperantes, contra o Index, contra o Santo Ofício, contra a Inquisição ( ainda que sem os abusos a que deu ocasião em alguns lugares ), contra as Cruzadas, porque tudo isto faz sofrer. Em outros campos ainda, o "bom coração" consiste em não falar de demônio, nem de inferno ou de purgatório, em não avisar aos doentes que a morte está próxima, em não dizer aos pecadores a gravidade de seu estado moral, em não lhes falar de mortificação, nem de penitência, nem de emenda, porque também isto faz sofrer. Já vimos um educador católico se manifestar contra os prêmios escolares porque fazem sofrer os alunos vadios! Como já vimos também associações religiosas tolerando em seu grêmio elementos perigosos para os associados e desedificantes para o público, porque a expulsão desses elementos os faria sofrer. Falar contra as modas e danças imorais, preconizar uma censura cinematográfica sem laxismo tudo isto em última análise parece descaridoso, porque "faz sofrer". Soubemos a este respeito de alguém que desaconselhava uma campanha contra os jornais imorais porque isto "faz sofrer" os editores cujas almas cumpre salvar!

* * *

Fizemos esta longa digressão para focalizar melhor o problema que de início formulávamos. Para o "bom coração", todo ódio é necessariamente um pecado. Dir-se-á o mesmo à luz da doutrina católica?

Pensando no perigoso furor da avalanche de "bons corações" de que o Brasil está cheio, quase não ousamos formular a pergunta. E certamente não responderemos por nós. Mas falaremos pela grande e autorizada voz de S. Tomás.

É o que faremos em próximo artigo”.

 

( “Catolicismo”, edição n.34, de outubro de 1953):

 

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Cultura e civilização


 

 

Quando se procura conceituar os termos “Cultura” e “Civilização”, hoje em dia, apesar de muitos debates sobre o tema, cai-se num emaranhado de afirmações díspares e com definições diluídas e pouco convincentes. A cultura pode ser vista como qualquer manifestação do conhecimento humano, e aí ela deveria ser escrita com “c’ minúsculo. Genericamente, cultura é conhecimento, é ciência, é saber, mas estes conceitos se expandem e completam-se num termo amplo denominado Cultura, com maiúscula, onde o conhecimento humano se desenvolve em todo o seu ser. Por sua vez a cultura, qualquer que seja ela, deve tender a crescer, conseqüência lógica da constante busca do saber que é inato na natureza humana, e crescendo ela vai um dia juntar-se a outras culturas e formar um todo harmônico e lógico, formando uma Civilização. Eis porque o progresso científico e tecnológico deveria completar o desenvolvimento cultural, no bom sentido, promovendo a verdadeira Civilização.

Neste aprimoramento cultural, dentre as ciências que mais o homem necessita para seu convívio destaca-se o conhecimento jurídico, o resultado da aplicação dos conceitos de direitos e deveres na sociedade.  Disto depende, em larga medida, uma pacífica convivência social.  É no conhecimento e respeito que o homem tem ao direito de propriedade, por exemplo, que ele aprende e vive o verdadeiro senso de justiça, que é a noção do “meu” e do “teu” e seus limites.

 

As sociedades primitivas não possuem a plenitude da Cultura e da Civilização

O que vem a ser uma verdadeira Civilização? Existiu uma civilização grega? Romana? Egípcia? Evidente; mas estas civilizações não chegaram a atingir a sua plenitude. De modo geral aprimoraram certas ciências menores, e algumas poucas maiores, como a filosofia, assim bem como algumas artes como a arquitetura e a música.  Mas muito pouco, pois logo estagnaram. Somente na medida em que começaram a desenvolver certas ciências é que se aproximaram um pouco da Cultura em toda a sua plenitude. Mas nunca chegaram a desenvolver todos os conhecimentos culturais ao mesmo tempo e atingir a perfeição social possível requerida.

Por que? Porque a Civilização pode ser entendida como o estágio de progresso de um povo, representado pela vida social, artes e conhecimentos culturais ou mesmo científicos. Neste sentido não se pode dizer que determinado povo chegou a constituir uma Civilização se ele desenvolveu apenas alguns setores de sua alma, mas quando tendesse a atingir o ponto máximo da cultura e desenvolvimento social em todas as atividades humanas, desde as mais simples até as mais complexas artes e ciências. Tal estágio só foi alcançado pela Europa Medieval quando nela se desenvolveu a Civilização Cristã.  Desabrocharam-se na alma humana conhecimentos nunca antes imaginados e retomaram-se aqueles que algumas sociedades antigas tinham abandonado na estagnação.

Foi na Idade Média que mais se desenvolveu o relacionamento social harmônico (embora em meio a conturbações decorrentes da antiga barbárie e ainda não inteiramente superada pela recente conversão ao Cristianismo), fruto da Doutrina Social Católica aplicada a todo corpo social. Desenvolveram-se ao máximo todas as ciências maiores, como a filosofia, a teologia (antes quase inexistente), a metafísica e a própria antropologia, as artes de um modo geral, como a arquitetura, a música, a pintura, etc. Desenvolveram-se também uma infinidade de ciências menores, como a matemática, a gramática, a geografia, etc. Tendo como fundo de quadro uma literatura vasta e rica, o medieval foi o único povo (ou povos) que conheceu e viveu uma verdadeira Civilização.  Diz-se geralmente que o europeu medieval formou como que um povo, tal era a unidade que havia no continente. E isto pelo fato de haver um laço comum entre todas aquelas gentes que, com suas línguas e costumes diferentes, obtiveram uma unidade: este laço era a Religião Católica que os unia.

Que dizer, então, dos povos antigos? É verdade que, na medida em que respeitaram a lei natural, as manifestações do homem na Antiguidade anterior a Cristo podem ser entendidas como expressões da cultura e de uma civilização, mas incompletas e cheias de erros. Desde a antiga Babilônia ao Império Romano, passando pelo mundo grego, aqueles povos fizeram ressurgir algo de civilização, mas em muitas coisas incipientes. Um exemplo é o senso de propriedade privada ou mesmo os conceitos de direito que se firmaram apenas com o surgimento da Civilização Cristã.

Pode-se dizer o mesmo de algumas sociedades primitivas, tipo tribal, que tenham de algum modo respeitado as leis naturais. A propriedade coletiva entre os índios é um exemplo. Posto, porém, que a tendência do homem pagão para o desregramento das paixões é mais forte, a lei é facilmente desrespeitada e o mais comum é o estabelecimento de costumes bárbaros e desumanos, geralmente inspirados e insuflados pelos feiticeiros. Pois para dominar os impulsos das paixões descontroladas é necessário mais do que conhecimento e força de vontade: é imprescindível a educação da consciência religiosa para tornar o homem dócil às graças divinas. E sem a graça de Deus o pagão tende por força de suas más inclinações para a crença em ritos fetichistas, cultos demoníacos, antropofagia, e uma infinidade de baixezas. Os costumes são depravados com vícios baixos e animalescos, até chegar ao uso de drogas alucinógenas. A brutalidade de seus instintos descontrolados impele-os facilmente para a crueldade, a vingança, a inveja, levando-os a cometer banalmente os crimes mais hediondos.

Não é deixando-se levar pela natureza que se conhece o verdadeiro estado de direito. Deus deixou ao homem a “lei natural”, por onde ele pode medir o seu comportamento e fazer o bem e evitar o mal. Mas isto não é suficiente para formar elementares conceitos de justiça e equidade, de molde a favorecer a concórdia de um bom convívio social. Resultado: a convivência, por não ser guiada pela consciência religiosa da retidão de alma, facilmente propende para as guerras. Como a paz social é ponto máximo a que se deve almejar uma verdadeira Civilização, já de per si um costume próprio a ela (a guerra, principalmente se for injusta ou por motivo fútil) não faz com que a vida primitiva se constitua uma civilização autêntica. Do mesmo modo não há verdadeira Cultura.

 

A Civilização e nossos sentidos

Para conhecer e amar a Deus, que encheu a Natureza de seus vestígios para que pudéssemos conhecê-LO e um coração humano propenso à bondade para amá-Lo, dispôs Ele no homem cinco sentidos. Mas tais sentidos não devem se limitar às suas funções primárias. Desta forma, a boca não se destina apenas a falar e deglutir, mas também para apetecer alimentos mais condimentados, para apurar mais o gosto, e usar as cordas vocais para entoar cânticos, louvores, recitar coisas artisticamente elaboradas pela inteligência. E assim são todos os outros sentidos, cada qual podendo ser usado pelo homem para algo mais sublime do que as suas simples funções primárias.  A visão para apreciar obras de arte, a audição para ouvir cantos e músicas que causem enlevo, o olfato para cheirar perfumes e aromas agradáveis, etc.

Qual a causa disto? É que o homem deve procurar os vestígios de Deus nas coisas criadas que estão ao seu redor, mas sempre buscando-O de uma forma mais perfeita, pois o homem não é só imagem mas semelhança de Deus. Assim, o gosto das comidas não deve se resumir só em mastigar e engolir os alimentos; a fala não deve se resumir na comunicação vocal entre os homens, etc.

O homem civilizado e cristão, ademais, é dotado de um dom, sobrenatural, com que ele se utiliza destes sentidos de uma forma moderada, comedida e sapiencial, e com isto busca também a Deus em coisas mais superiores que são as do espírito. O homem primitivo, pelo contrário, não apetece algo mais sublime do que empanturrar a barriga, músicas mais suaves do que folhas ou paus roçando uns nos outros e o rufar abafado dos rústicos tambores. E a arte? Nada há de mais rude e grotesco do que os penduricalhos nas orelhas, rasgando-as, dilacerando-as, ou então as tatuagens que deformam o corpo humano, sendo este mais do que vestígio pois é a própria imagem e semelhança de Deus.

 

O que é Cultura; o que é Civilização

A Civilização por excelência é a Católica; a Cultura por excelência também é a Católica. Portanto, somente sendo católicos teremos verdadeira cultura e verdadeira civilização. Não há melhor definição para Cultura e Civilização do que a encontrada na obra “Revolução e Contra-Revolução”, do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira:

“...o elemento fundamental da cultura católica é a visão do universo elaborada segundo a doutrina da Igreja. Essa cultura compreende não só a instrução, isto é, a posse dos dados informativos necessários para uma tal elaboração, senão também uma análise e uma coordenação desses dados conforme a doutrina católica. Ela não se circunscreve ao campo teológico, ou filosófico, ou científico, senão que abarca todo o saber humano, se reflete na arte e implica a afirmação de valores que impregnam todos os aspectos da existência”.[1]

Só se é verdadeira Cultura por causa de tais princípios, o que destoa das culturas (com “c” minúsculo) pagãs, da Antiguidade ou indígenas, que desenvolveram (quando o fizeram) apenas alguns aspectos do saber humano. Eis a definição principal:

“Civilização católica é a estruturação de todas as relações humanas, de todas as instituições humanas, e do próprio Estado, segundo a doutrina da Igreja.

“De todos estes dados é fácil inferir que a cultura e a civilização católica são a cultura por excelência e a civilização por excelência”.[2]

Como a Igreja tem por objetivo levar o homem a Deus, a verdadeira Civilização deve ser fruto da doutrina da Igreja, a qual somente desta forma conseguirá levar o homem ao seu fim último, que é a construção do Reino de Deus aqui na terra, reino não só espiritual mas também temporal. Pode-se também dizer que a Civilização deverá ser o amor de Deus posto em prática no convívio social. E assim, o egrégio pensador católico acima citado afirma em outra oportunidade:

“Há nos desígnios da Providência uma relação íntima entre a vida terrena e a vida eterna. A vida terrena é o caminho, a vida eterna é o fim. O Reino de Cristo não é deste mundo, mas é neste mundo que está o caminho pelo qual chegaremos até ele.

“Pode-se dizer que o Reino de Cristo se torna efetivo na terra, em seu sentido individual e social, quando os homens no íntimo de sua alma como em suas ações, e as sociedades em suas instituições, leis, costumes, manifestações culturais e artísticas, se conformam com a Lei de Cristo.

“Se Jesus Cristo é o verdadeiro ideal de perfeição de todos os homens, uma sociedade que aplique todas as suas leis tem de ser uma sociedade perfeita, a cultura e a civilização nascidas da Igreja de Cristo têm de ser forçosamente, não só a melhor civilização, mas a única verdadeira. Di-lo o Santo Pontífice Pio X: “Não há verdadeira civilização sem civilização moral, e não há civilização moral senão com a verdadeira religião” (Carta ao Episcopado Francês, de 28.08.1910, sobre “Lê Sillon”).  De onde decorre com evidência cristalina que não há verdadeira civilização senão como decorrência e fruto da verdadeira Religião...”[3]

 



[1] “Revolução e Contra-Revolução” – Plínio Corrêa de Oliveira -  Edições “Diários das Leis”, novembro de 1992, págs. 107/108
 
[2] op. cit. pág. 108
[3] Artigo “A Cruzada do Século XX”, de Plínio Corrêa de Oliveira, “Catolicismo”, janeiro de 1951.